POESIA AO AMANHECER
Hoje não vos escrevo ao amanhecer, ao crescer tranquilo de mais um dia, mas antes do jardim interior de um hotel na cidade que já foi capital de um imenso império que também, tal como hoje, parecia indestrutível aos seus construtores e um dia ruiu como um baralho de cartas soprado pelos ventos da história e pela vontade dos povos. Assim, pela segunda vez falho um encontro com a história. Rodeado pela grandeza de tanta beleza, deixo correr esses afluentes de sentimentos que as imagens televisivas me mostraram e quero falar e um embargo prende-me a voz como agora sinto a pena a resistir nesse deslizar da escrita. Talvez nunca tenha tido tantas certezas, como talvez nunca tenha sentido tantas dúvidas, mas não hesito porque sei que o caminho é para a frente, para o horizonte. É possível que ao contrário de muitas das nossas acções, aqui devamos olhar de quando em vez para trás, contemplando o passado para evitar que se repitam os mesmos dramas e possamos colher o ensinamento do muito que outros semearam, mas não alimentemos muitas dúvidas sobre quem a história vai fazer pender o prato da balança que contém a razão, a sabedoria e a justiça. Só pode ser sobre os deserdados de sempre. Passará certamente por eles a construção desse sonho inigualável de solidariedade e de fraternidade. É verdade que ainda acordamos todas as manhãs ao som das trombetas do Nasdaq ou do Dow Jones, mas percorrem já os caminhos das estradas sem saída. Muito drama, muita miséria, muita luta ainda vai atravessar a vida dos povos, mas a esperança, essa chama imensa acesa na alma dos que constroem o futuro com poesia não se vai extinguir nunca mais e os impérios, por tremenda que seja a sua força e o seu poderio, terminarão assim, como os vejo aqui, grandiosos sem dúvida, mas ruínas, apenas ruínas do passado. Olho para as ruas de Lisboa, essas ruas que viram os mesteirais em 1383, os soldados da Rotunda em 1910, ou aqueles outros bravos na madrugada de Abril e sinto o pulsar da história, o murmúrio desse rio subterrâneo que percorre as veias de uma nação e um dia há-de desaguar com fragor nos palácios do poder e como escreveu um outro poeta, nessa altura poderemos cantar de garganta cheia para que ninguém fique sem escutar, “venho dizer-vos que não tenho medo / a verdade é mais forte que as algemas / venho dizer-vos que não há degredo / quando se traz a alma cheia de poemas”. Tenham um bom dia que bem merecem.
Com a verdade fui solidário:
de instaurar a luz na terra.
Quis ser tão comum como o pão:
a luta não me encontrou ausente.
Porém aqui estou com o que amei,
com a alegria que perdi:
junto a esta pedra não repouso.
Trabalha o mar em meu silêncio.
PABLO NERUDA, “As Pedras do Chile”, in “Presentes de um Poeta”
Não deveis admirar-vos, minha amiga, que tantas descrições tenham resultado em vão: no fundo de todo o ser perfeito, há um não sei quê de único que faz esmorecer o elogio.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
“Logo a seguir ao referendo francês, os defensores da Constituição – a começar pelos grandes órgãos da comunicação social – retomaram os ataques contra a maioria dos eleitores, suspeitos de irresponsabilidade ou de xenofobia. Igualmente inadaptada à mensagem dos franceses parece ser a resposta do presidente da República, Jacques Chirac, traduzida num simples remendo ministerial marcado pelo regresso ao governo de Nicolas Sarkozi, apesar de este ser defensor de um modelo liberal rejeitado pelo sufrágio universal. Um tal autismo dos meios dirigentes europeus face às preferências e prioridades das populações sublinha o maior defeito da construção comunitária. Desde o início que o edifício europeu foi construído às escondidas e imposto por uma elite social a áreas cada vez mais extensas da vida colectiva. A tal ponto que a «construção da Europa» acabou por se identificar progressivamente com a destruição de alguns dos valores originalmente proclamados. Na realidade, esta surpresa é relativa: a esquerda francesa pôde avaliar muitas vezes ao longo da história o peso dos constrangimentos de uma Europa liberal sobre um projecto de transformação social.”
SERGE HALIMI, “Uma rejeição da esquerda em nome da Europa”, in “Le Monde diplomatique”, Junho de 2005
Porto, 20 de Junho de 2005