Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

31 março, 2008

GERÊS

Quando escrevemos sobre o passado, nunca reflectimos a realidade tal como a vimos. A memória tende a acrescentar imaginação ao que vimos ou ao que vivemos. Com a natureza é também um pouco assim, tanto mais que a mesma paisagem apresenta cores diferentes consoante a hora do dia. É como uma casa de quatro faces em que cada uma delas vai adquirindo novas tonalidades consoante o sol vai rodando em torno de si. O vale da cascata do Arado ao amanhecer produz uma sedução sublime ao olhar. Apreciado da encosta nascente parece possuir uma amplitude muito maior do que aquela que de facto tem. As árvores a que teimo em chamar cedros, parecem miniaturas face às paredes graníticas que as protegem. O sol que se ergue tem uma luminosidade cativante e espalha-se dolente pelo chão. O rio com um anormal volume de água, murmurava por entre as pedras. O movimento parece suspenso e é assim que a montanha nos acolhe. Sente-se um frio ainda nocturno quando nos fazemos ao caminho e nesta manhã parecemos não levar destino e que para onde vamos não temos pressa de chegar. Começamos por visitar aquela casa perdida na floresta, escondida das sombras há cinquenta anos, com um jardim cuidado que nos faz lembrar o conceito que criamos para o paraíso que é o mesmo que dizer, para o belo, o perfeito, o lugar onde tudo nos é oferecido. A piscina e a sala acolhedora completavam um quadro que pensamos como ideal. Com algum esforço retomamos o caminho, mas vinte minutos depois voltávamos a parar na casa de montanha, para olhar, pensar e descansar de um esforço que ainda não começara. Enfim, partimos para essa viagem que parecia não querer ter começo. Um primeiro erro de trajecto levou-nos a subir a montanha e só já numa altitude apreciável e com o estradão de terra visível em direcção descendente foi possível corrigir a trajectória e rumar em direcção a leste. Com a manhã avançada, percebemos que a descida não só era íngreme, como longa e, sobretudo, profunda. Estava visível que seria uma descida aos infernos, não àquele lugar de tormentos que a mente humana criou como desafio ao divino, mas antes, pela dureza do trajecto e pela natureza do esforço. Claro ficou ainda que o objectivo traçado não seria já um destino, mas antes um meio para conhecer, para descobrir, para saborear. O rio estendia-se fora da sua preguiça habitual, pela força que o volume das águas imprimia à corrente, desenhando lagoas de verde esmeralda que não fosse o frio que o calor do sol não conseguia afastar, seria um convite a um mergulho nas suas profundezas. Cercava-nos tranquilidade, mas não silêncio que as águas saltavam ágeis por entre as pedras. Ainda subimos na encosta da outra margem e ao chegarmos quase ao seu ponto mais elevado pudemos observar o trajecto de regresso e percebemos que se a descida tinha sido aos infernos, a subida haveria de ultrapassar os céus. A vantagem de certos momentos é que não possuem retorno o que não simplificando as coisas as torna inevitáveis. Consoante subíamos a grandeza da paisagem esmagava-nos a capacidade de olhar e diminuía em certa medida o esforço que nos desgastava a estrutura muscular. Houve um momento que pensamos que poderíamos esfumar-nos a qualquer instante, tão alto havíamos alcançado aquela encosta com uma inclinação extraordinária. Quando pensamos já não ser possível subir mais em altura depois de arranharmos as nuvens, percebemos, ao olhar em frente, que a última fronteira se encontrava para além do céu. Foi uma viagem até ao infinito até que o caminho estabilizasse e nos desse um momento de repouso. O sol descia de forma acentuada e mostrava-nos o tempo que dispúnhamos até que o seu brilho se escondesse, mas ainda foi possível uma longa conversa com um dos habitantes de Fafião enquanto descansávamos na casa da montanha que nos acolheu no regresso. A última hora foi já um passeio, calmo e vagaroso até junto do Arado. Neste esforço colectivo que resulta destas viagens de prazer ao interior das montanhas, vai-se reforçando uma amizade que se estende no tempo e estreitando os seus laços. Aliás, o nosso diálogo enquanto descíamos ao fim da manhã, veio demonstrar que se algo nos separa é a interpretação do amor, o que é natural tão complexo se vem revelando esse sentimento.

27 março, 2008

POESIA AO AMANHECER


Olá! meus Amigos

Ainda não vos tinha dito, mas a semana passada fui a Trancoso. Fica na Beira Alta a norte de Celorico e a sul de Foz Coa, mais ou menos a Oeste de Pinhel. Trancoso é uma vila muralhada e está caracterizada como vila medieval. Ao fim da tarde na Primavera é uma delícia caminhar pelo interior da muralha. Sem pressão automóvel e humana, respirando-se serenidade, é altamente reconfortante. Apetece parar o tempo e deleitar-nos naquele ambiente medieval. Iniciei o regresso às 20h30 com o crepúsculo a cair, os cumes das montanhas a desenharem-se no horizonte e na contraluz, o sossego a reinar e baixinho o José Afonso a cantar, oh meu bem se tu te fores/como dizem que te vais/deixa-me o teu nome escrito/numa pedrinha do cais.

"Nós, os que pereceremos, tocamos os metais,
o vento, as margens do oceano, as pedras,
sabendo que seguirão, imóveis ou ardentes,
e eu fui descobrindo, dando nome às coisas:
foi meu destino amar e despedir-me."

PABLO NERUDA, "Ainda", in "Presentes de um Poeta"

"Por enquanto, para ti, eu não sou senão uma raposa igual a outras cem mil raposas. Mas, se tu me prenderes a ti, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, eu também passo a ser única no mundo..."

ANTOINE SAINT-EXUPÉRY, in "O Principezinho"

"De acordo com dados das Nações Unidas, cerca de 1100 milhões de pessoas no mundo não são servidas, actualmente, por instalações para fornecimento de água potável e 2400 milhões não têm acesso a sistemas de saneamento. Apesar de, nos últimos 20 anos, mais de 2400 milhões de pessoas terem tido acesso a água potável e 600 milhões a sistemas de saneamento melhorados.
Ainda segundo as mesmas fontes, as doenças relacionadas com a água são uma das causas mais comuns de enfermidade e de morte e afectam, principalmente, os pobres nos países em desenvolvimento. A título de exemplo refere-se que, no ano de 2000, a taxa de mortalidade estimada devida a diarreias provocadas pela falta de sistemas de saneamento ou de higiene e por outras doenças relacionadas com o saneamento da água foi de 2.213.000 pessoas.
Em África cerca de 300 milhões de pessoas, ou seja, 40% da população, não dispõem de qualquer sistema de saneamento nem de serviços sanitários elementares, o que representa um acréscimo de 70 milhões de pessoas relativamente à situação vivida em 1990.
Estima-se, também, que cerca de 50% da população dos países em desenvolvimento está exposta a fontes de água contaminadas."

JOÃO BAU, "o direito à água uma responsabilidade colectiva", in "Ideias à Esquerda", nº 3

Porto, 27 de Abril de 2004

25 março, 2008

POESIA


Queria que a vida fosse este instante
este tempo de paragem
de sossego.
Queria que a vida fosse esta tarde
este momento leve
de silêncio.
Queria que a vida fosse este momento
este leve sentir
do tempo.
Queria que a vida fosses tu
este calmo olhar
da natureza.


Amorim, 25.03.08

24 março, 2008

CINEMA


Sabemos que este planeta onde vivemos possui espaços que nos arrebatam pela beleza da natureza ou das gentes, ou mesmo de ambas. A atracção por vezes é tão grande que não conseguimos explicar como ficamos com o olhar preso. A Colômbia pensada como um território possui um sabor que nos atrai, nos arrasta para si e nos faz soltar as asas quando admiramos a paisagem que nos rodeia. Algumas das suas cidades, pensadas à distância parecem imobilizadas no tempo, num tempo que nos parece demasiado recuado sem precisarmos onde nem quando. Cartagena de las Índias, cidade do Caribe lida em castelhano, língua do seu verdadeiro nome, faz-nos pensar nessas cidades quentes com um grau de humidade que nos faz transpirar o sangue nas veias e provoca uma exaltação dos sentimentos. Sentimos a presença vagabunda de piratas e as suas muralhas marítimas fazem-nos ver naus do reino aportando ao seu mar. A alma vibra-nos e aquele calor que transforma o corpo, o arrebata para movimentos descontrolados em busca do outro, apossa-se de nós e sente-se uma dança ao som de músicas que nos envolvem a mente, descontrolam o pensamento e nos lançam nos braços da fantasia que o amor sabe inventar. De um lado é o mar, horizonte aberto, largo, em que os infinitos se tocam, se beijam num ponto onde não podemos tocar-lhe. Do outro é o sul, o interior, a floresta, o imenso e intenso verde, mágico, encantado a levar-nos para o coração das montanhas que iniciam essa subida soberba até ao céu. Quando pousamos os pés neste espaço conquistado pela natureza e que aceitou os homens debaixo de certas condições, entre as quais, que não fosse quebrado esse êxtase que transporta desde a nascença, sentimos que tudo o que conhecíamos desaparece, transforma-se, perde sentido. Apreendemos que a dimensão da vida adquire patamares que desconhecíamos e passamos a um instante em que todos os contos maravilhosos da infância se transformam em reinos vivos. A qualquer momento, sabemos que a princesa dos nossos sonhos vai aparecer numa das naus que aportaram ao cais para transportar o ouro de regresso ao reino.
Gabriel Garcia Marquez através da sua obra literária fez-nos desembarcar neste mundo extraordinário e de fascínio. Ainda nos sentíamos azoratados pelos momentos mágicos dos Cem anos de solidão quando nos faz cair nesse assombro amoroso a que chamou, “O Amor em tempos de Cólera” e que agora aparece no cinema. Quando uma história literária adquire a dimensão que teve a obra do autor colombiano e que deslumbrou milhões de pessoas pelo mundo, temos sempre o receio que a transposição para a arte do movimento em tela possa retirar o efeito que a sensibilidade das palavras geraram. É que uma paisagem descrita tem de ser imaginada e nesse processo de criação, podemos supô-la com a riqueza com que o nosso pensamento se encontra preparado para o sonho, enquanto que essa mesma natureza olhada tem de ser procurada nos seus pormenores e o correr da fita não nos deixa tempo para reflectir e muito menos para regressar atrás e ver de novo. Por outro lado, se vamos ver um filme de amor, temos de nos encontrar preparados para assimilar esse romantismo de forma a viver com a mesma intensidade esses amores perdidos entre a floresta e a montanha. Pelo menos, se o filme não tiver alcançado a dimensão da obra literária sempre diminuímos o efeito, tantas vezes, devastador da desilusão. Mas neste caso, o filme compensa. Começando por mostrar aspectos dessa cidade que recriamos na memória como possuída e caminhada por piratas sem lei, escravos desgastados pelo tempo, senhores, da terra, do céu e das almas e a permanente sensualidade das mulheres a fazer arrastar a vontade até aos seus olhares que espalham sementes irrequietas na consciência dos homens e fazendo descer em viagens de altitude pela nascente dos Andes cobertas de natureza verde, a obra cinematográfica tem o seu princípio com Florentino Ariza em idade vetusta, nos braços e no peito de uma jovem mulher onde todos os Domingos lavrava um campo de amor como quem amanhava palavras atiradas ao vento. E no meio desse esplendor onde a carne se saciava, ouve o sino da catedral e percebe que a sua hora tinha chegado. Percebe que aquele toque tangente não só anuncia a morte de alguém grande, como também lhe traz a notícia que a mulher que amou durante cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias, ficou livre para ser amada.
Florentino Ariza é um adolescente que não chegou a conhecer o pai e um dia ao levar uma mensagem como tantas outras, sente que ficou preso no caminho, sente que o amarraram e o puxam de forma irremediável. Sente que o acorrentaram da única forma que um homem sabe que não se liberta. Ficou laçado pelos olhos negros de uma mulher. Não importa quem é, nem como é, importa apenas que é aquela que sabemos que um dia vai chegar, estejamos onde estivermos. É como soltar um rio represado. A corrente começa por se soltar, devagar, lentamente para de seguida se soltar aos borbotões à procura do mar, onde há-de soltar as asas e voar para a imensidão do além. O que vai acontecendo é apenas o evoluir de uma vida que não deixa de comportar essa sensibilidade da entrega. Aquele jovem, percebeu que aquele olhar era o seu destino e o mundo deixou de ter fronteiras que lhe impedissem, que lhe tapasse o seu caminho até à mulher a quem entregava a vida e a alma. Mas a vida só aqui e ali nos garante essa felicidade que tanto perseguimos e, tantas vezes, esses momentos felizes dependem da autorização de outros. Fermina Daza percebeu que a luz que soltara do seu olhar tinha agarrado aquela estrela ao seu universo e alimentou-a dentro da galáxia onde viviam os seus sentimentos. Todos precisamos de ser amados e Fermina também necessitavam que assaltassem o seu palácio, e nada melhor que um romântico para ser capaz de trepar às paredes da fortaleza onde crescia. Mas o desenrolar da batalha iria mostrar que outros personagens podiam desempenhar um papel determinante. Ainda a levaram para o interior dessas florestas que transpiram ao amanhecer e as mulheres ficam trocam olhares secretos com homens casados como lhe confidenciou a sua prima. De nada adiantou, pois Florentino era um jovem determinado e estava decidido a ter por companheira para o resto da vida aquela mulher que percebera ser a única que lhe podia conquistar a alma. O pai de Fermina e a ameaça de cólera haveriam de mostrar que o futuro pode ser reescrito a cada esquina e aquele jovem haveria de derreter lágrimas amargas quando percebeu que a mulher que intensamente amava só muito mais tarde haveria de chegar até ao leito que construíra em aldeias de fantasia. Os anos foram passando enquanto a vida lhe contava os anos. As mulheres, outras que não a que amava, foram-lhe passando pela vida e pela cama. A todas, certamente que amou, antes de mais o corpo, e a todas terá deixado gestos de ternura e palavras de carinho. Os seres humanos têm essa capacidade de entrega a cada momento. Depende da sensibilidade de cada um, do momento em que vivem, das frustrações que acumulam, do cansaço que os invade, para se deixarem seduzir por uma palavra, um gesto, um acto de carinho. Amar uma mulher e eventualmente oferecer-lhe, ou dela receber, mais do que palavras, não tem necessariamente de se esquecer o grande amor que ainda não chegou, ou que possamos ter perdido. Os momentos de consolo, se são mútuos, não fazem esquecer a mulher para a qual a nossa vida foi construída. Florentino Ariza amou centenas de mulheres através da pena inventiva do Prémio Nobel colombiano, mas soube através daquele som plangente do sino que o seu tempo de amar tinha chegado ao seu termo e que o amor da sua vida o chamava. Quando finalmente convenceu a viúva Fermina Daza a uma viagem de repouso pelo rio Magdalena ladeado pela floresta que escondia duendes e homens de magia, explicou-lhe que o amor que viaja nos olhares, mais do que um sentimento é um estado de graça, um dom divino, um acto inexplicável. Cinco dezenas de anos depois escondidos da cólera que grassava em terra, os dois amantes no verdadeiro sentido da palavra, iniciam uma viagem sem fim, rio acima e rio abaixo, saciando o sentimento do amor que os gestos transportaram escondidos no regaço da alma. Tal como o livro, o filme acaba também por ser um poema, um hino, um apelo aos homens e mulheres para que se amem, que entendam a vida como um contínuo movimento que deve conduzir a um momento de entrega, de usufruto de tudo o que de mais belo transportamos e que tornamos visível através do sorriso, do rosto e da expressão do olhar.

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