POESIA AO AMANHECER
Bom dia, meus Amigos
Deitado sobre o chão do aparelho perscrutava o horizonte, mas duvidava bastante do que ainda podia alcançar o seu olhar. Começava a sentir leves arrepios de frio e evitava usar os binóculos, pois a fadiga no olhar faziam-no tremer e não conseguia distinguir qualquer objecto entre o colorido acinzentado das ondas. O ruído das pás a rodar no rotor chegava-lhe como um som longínquo e uma espécie de dormência abalavam-lhe a vontade naquele terceiro dia consecutivo de busca. Quase doze horas seguidas a olhar o mar de forma infrutífera, seguindo um esquema de quadrado, começavam a deixar marcas arrasadoras. Contudo, o objecto da procura não dava sinais, pelo que, enquanto existissem hipóteses mínimas de sobrevivência, a procura continuava. Oitenta metros, abaixo, as ondas revelavam-se alterosas e era difícil imaginar poder encontrar-se alguém, mas pelo menos sinais deviam aparecer e, no entanto, não se vislumbravam. Naquela missão a esperança dura até que seja dada ordem de regresso definitivo à base e tal ainda não tinha ocorrido. A manhã avançava célere e o heli já só tinha combustível para mais uma hora. Continuava a olhar as águas, a verificarem o ondular poderoso do oceano e a tentar adivinhar algo a aparecer do seu interior, mas até àquele momento, nada havia surgido que ajudasse a ter qualquer ponto de referência. Por um minuto teve a sensação que os olhos adormecidos, se fecharam, que as pálpebras baixaram num apelo de cansaço, mas quando voltou a abri-las já não sabia se sonhava ou se via mesmo uma pequena mancha alaranjada entre a parte baixa de duas ondas, bem no interior das mesmas. Esfregou os olhos e pegou nos binóculos, mas não conseguia ter a certeza. Voltou a pesquisar as águas e então como se algo o despertasse adquiriu a certeza do que via, quase ao mesmo tempo que ouviu o grito do piloto e sentiu que este com destreza inclinou o aparelho para norte. Agora sobrevoavam claramente a balsa. Dos três homens só um dava sinais de vida, mas incapaz de se mexer. Era necessário descer, pelo que em conjunto com o companheiro, aprestou-se rapidamente e como se a fadiga nunca tivesse existido preparou-se para pousar sobre o mar e prestar o socorro possível. O oceano estava frio, gelado mesmo, pelo que começou a duvidar da possibilidade do auxílio ser atempado. Aproximou-se do barco de borracha e acabou por descobrir que todos estavam vivos, mas debaixo de exaustão extrema, pelo que o trabalho de içá-los iria ser moroso e delicado e começava a colocar-se a questão da autonomia do heli. O pior que podia acontecer era terem de interromper a missão, pois iriam perder o contacto, dado que não havia possibilidade de chamar outro Puma e a fragata da marinha ainda demoraria vinte minutos a aproximar-se. Procurou agir célere e com eficácia, pondo em alerta todos as suas capacidades e concentração. A operação de erguer os náufragos durou vinte minutos e neste momento rumavam já para terra. Quando atravessaram a costa já tinha conseguido obter sinais de reanimação, mas começava de novo a sentir a fadiga a invadi-lo. O aparelho pousou finalmente no heliporto da base e iniciou-se a missão do 112. As pás começaram a abrandar o movimento giratório até que o som ficou quase imperceptível. Dirigiu-se para a caserna, despiu-se e deitou-se. Adormeceu quase de seguida e desta vez não iria ter pesadelos, pois a missão foi bem sucedida e três homens foram salvos. Só podia sentir prazer em adormecer e embalar o sentimento feliz de ter cumprido um dever humano e nobre.
Há alguns anos atrás, cheias imensas cobriram quase totalmente o território moçambicano. Impotentes as populações aguardavam em cima das árvores, das casas, sobre qualquer coisa que fosse mais elevada que a corrente de água. Quando os mortos se contavam por milhares chegaram os helis da Força Aérea Sul-Africana que salvaram outros milhares de pessoas. Durante dias e dias seguidos, do amanhecer ao anoitecer, aqueles aparelhos dirigidos por pilotos de raça branca, salvaram milhares de seres humanos de raça negra, quantas vezes arriscando a própria vida. Penso que o mundo nunca chegou a agradecer verdadeiramente a esses homens. Pela minha parte decidi hoje, recordar a sua nobre missão e agradecer-lhes aqui neste espaço que se deseja de poesia matinal, bem como aos pilotos portugueses dos Puma que tantas vezes também arriscam a vida para salvar homens no mar.
MISSÃO
«Deixem passar...»
Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevido,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras de um íntimo terror.
E cá vou, a passar,
Aterrado e sozinho,
A lembrar
O Santo e a Senha com que abri caminho...
MIGUEL TORGA
Há qualquer coisa de tranquilizador, quando se é infeliz e nos consideramos muito culpados, em ser-se tratado como uma criança sem importância.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
“Os animais vêm aí, dão-se a ver!” É este o significado da expressão, “Sogobó”. No Mali, todos os anos é apresentado um teatro de máscaras e de marionetas, cujas raízes se encontram na época pré-colonial. Muitas representam estes animais. Somos convocados a vê-las no Museu Nacional de Etnologia.
NAIR ALEXANDRA, “As Máscaras Falantes”, in “História”, Maio de 2005.
Deitado sobre o chão do aparelho perscrutava o horizonte, mas duvidava bastante do que ainda podia alcançar o seu olhar. Começava a sentir leves arrepios de frio e evitava usar os binóculos, pois a fadiga no olhar faziam-no tremer e não conseguia distinguir qualquer objecto entre o colorido acinzentado das ondas. O ruído das pás a rodar no rotor chegava-lhe como um som longínquo e uma espécie de dormência abalavam-lhe a vontade naquele terceiro dia consecutivo de busca. Quase doze horas seguidas a olhar o mar de forma infrutífera, seguindo um esquema de quadrado, começavam a deixar marcas arrasadoras. Contudo, o objecto da procura não dava sinais, pelo que, enquanto existissem hipóteses mínimas de sobrevivência, a procura continuava. Oitenta metros, abaixo, as ondas revelavam-se alterosas e era difícil imaginar poder encontrar-se alguém, mas pelo menos sinais deviam aparecer e, no entanto, não se vislumbravam. Naquela missão a esperança dura até que seja dada ordem de regresso definitivo à base e tal ainda não tinha ocorrido. A manhã avançava célere e o heli já só tinha combustível para mais uma hora. Continuava a olhar as águas, a verificarem o ondular poderoso do oceano e a tentar adivinhar algo a aparecer do seu interior, mas até àquele momento, nada havia surgido que ajudasse a ter qualquer ponto de referência. Por um minuto teve a sensação que os olhos adormecidos, se fecharam, que as pálpebras baixaram num apelo de cansaço, mas quando voltou a abri-las já não sabia se sonhava ou se via mesmo uma pequena mancha alaranjada entre a parte baixa de duas ondas, bem no interior das mesmas. Esfregou os olhos e pegou nos binóculos, mas não conseguia ter a certeza. Voltou a pesquisar as águas e então como se algo o despertasse adquiriu a certeza do que via, quase ao mesmo tempo que ouviu o grito do piloto e sentiu que este com destreza inclinou o aparelho para norte. Agora sobrevoavam claramente a balsa. Dos três homens só um dava sinais de vida, mas incapaz de se mexer. Era necessário descer, pelo que em conjunto com o companheiro, aprestou-se rapidamente e como se a fadiga nunca tivesse existido preparou-se para pousar sobre o mar e prestar o socorro possível. O oceano estava frio, gelado mesmo, pelo que começou a duvidar da possibilidade do auxílio ser atempado. Aproximou-se do barco de borracha e acabou por descobrir que todos estavam vivos, mas debaixo de exaustão extrema, pelo que o trabalho de içá-los iria ser moroso e delicado e começava a colocar-se a questão da autonomia do heli. O pior que podia acontecer era terem de interromper a missão, pois iriam perder o contacto, dado que não havia possibilidade de chamar outro Puma e a fragata da marinha ainda demoraria vinte minutos a aproximar-se. Procurou agir célere e com eficácia, pondo em alerta todos as suas capacidades e concentração. A operação de erguer os náufragos durou vinte minutos e neste momento rumavam já para terra. Quando atravessaram a costa já tinha conseguido obter sinais de reanimação, mas começava de novo a sentir a fadiga a invadi-lo. O aparelho pousou finalmente no heliporto da base e iniciou-se a missão do 112. As pás começaram a abrandar o movimento giratório até que o som ficou quase imperceptível. Dirigiu-se para a caserna, despiu-se e deitou-se. Adormeceu quase de seguida e desta vez não iria ter pesadelos, pois a missão foi bem sucedida e três homens foram salvos. Só podia sentir prazer em adormecer e embalar o sentimento feliz de ter cumprido um dever humano e nobre.
Há alguns anos atrás, cheias imensas cobriram quase totalmente o território moçambicano. Impotentes as populações aguardavam em cima das árvores, das casas, sobre qualquer coisa que fosse mais elevada que a corrente de água. Quando os mortos se contavam por milhares chegaram os helis da Força Aérea Sul-Africana que salvaram outros milhares de pessoas. Durante dias e dias seguidos, do amanhecer ao anoitecer, aqueles aparelhos dirigidos por pilotos de raça branca, salvaram milhares de seres humanos de raça negra, quantas vezes arriscando a própria vida. Penso que o mundo nunca chegou a agradecer verdadeiramente a esses homens. Pela minha parte decidi hoje, recordar a sua nobre missão e agradecer-lhes aqui neste espaço que se deseja de poesia matinal, bem como aos pilotos portugueses dos Puma que tantas vezes também arriscam a vida para salvar homens no mar.
MISSÃO
«Deixem passar...»
Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevido,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras de um íntimo terror.
E cá vou, a passar,
Aterrado e sozinho,
A lembrar
O Santo e a Senha com que abri caminho...
MIGUEL TORGA
Há qualquer coisa de tranquilizador, quando se é infeliz e nos consideramos muito culpados, em ser-se tratado como uma criança sem importância.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
“Os animais vêm aí, dão-se a ver!” É este o significado da expressão, “Sogobó”. No Mali, todos os anos é apresentado um teatro de máscaras e de marionetas, cujas raízes se encontram na época pré-colonial. Muitas representam estes animais. Somos convocados a vê-las no Museu Nacional de Etnologia.
NAIR ALEXANDRA, “As Máscaras Falantes”, in “História”, Maio de 2005.
Porto, 09 de Junho de 2005
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