Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

16 maio, 2007

LEITURAS


“Conheci” o autor nos anos idos da década de 70 quando pela primeira vez caminhei ao encontro dos revolucionários de 1383 e, fascinou-me, arrebatou-me, a escrita, o empolgamento, a beleza das palavras com que António Borges Coelho descrevia os diversos momentos da revolta, os passos dos homens que naquele momento e naquela Lisboa medieval, faziam história. Quando nos diz que escutando “os murmúrios que se ouvem vindos dos subterrâneos da história” sentimos esse fascínio que só é proporcionado pelos grandes acontecimentos nos grandes espaços do nosso planeta ao longo dos séculos. Segui o conselho do Professor e grande historiador e procurei ouvir esses murmúrios subterrâneos que tanto ensinamento, tanto conhecimento nos proporcionam para enriquecimento da vida. Uma e outra vez fui tropeçando com a sua escrita, os seus estudos, ora abordando a presença árabe no território nacional, ou seguindo as naus para o Oriente, ou ainda, tentando compreender a complexidade da vida quando os homens fazem história. E uma e outra vez, a delícia da palavra a encher o prazer de ler.
Há tempos atrás dei pela presença de um livro, edição de 2005, da autoria do Prof. Borges Coelho, com o título de “Youkali”. Folha de papel cuidado, ilustrações a compor os espaços, tamanho a condizer e preço a quebrar a nossa tentação. Contudo, mais tarde, a Bertrand ofereceu parte sensível do seu valor e, não resisti. Há dias, terminei, pelo menos, a primeira leitura. De início parece que as palavras não têm o fôlego de outrora, mas, de seguida, esquecemo-nos do enredo da história e deixamo-nos levar ao sabor da corrente, como levados por essas águas que rumam para o mar. O autor, ao que julgo saber, foi sempre de grande coerência na vida. Ideologicamente também, mas os tempos complexos que vivemos não se vislumbram fáceis e alguns vacilam no que tantas vezes tiveram por absoluto, ou decidem percorrer outros caminhos na defesa das ideias. Não sei até que ponto tal se passou com o Prof. Borges Coelho e, além de ser injusto, não seria de bom-tom fazer juízos de valor, ou deixá-los subterraneamente armadilhados, quando não sabemos exactamente do que falamos. Atrevo-me apenas a dizer que, neste seu trabalho de escrita, viajou a um passado que foi seu e de muitos de nós seus contemporâneos e, no decorrer dessa viagem, regressamos à sedução de outros textos, à excelência das frases que descrevem gestos simples, mas de muita nobreza. Descreve-nos jornadas passadas, tempos de combate de ideias em que a vida se empenhava até poder ser perdida. Mas a vida humana não se completa sem o amor, da paisagem, das coisas, da natureza, da cidade e, naturalmente dos homens e das mulheres. E é por aqui que nos perdemos definitivamente. Pressente-se ainda um amor por Lisboa, pela cidade, a cidade grande que é o espaço onde todos habitamos, mas de uma forma particular por esse espaço da capital, como se tornasse seiscentos anos atrás e seguisse a cavalgada de Álvaro Pais e dos mesteirais em direcção ao Paço. “Não há uma rua ou um lugar que não esteja marcado pela história. Mas não é essa história que hoje me inquieta. São as marcas da minha relação com os lugares. O meu Terreiro do Paço olha das janelas abertas por cima das arcadas para os cacilheiros que partem e atracam e para os golfinhos que nadam e saltam em frente do Cais das Colunas. Lisboa é as casas e as ruas onde habitei, as mulheres que amei e desejei, os quartos onde desafiei no sono as passadas da morte”. É o autor em visita a um passado que quer assumir, como seu e de todos aqueles que o acompanharam quando o historiador era ainda combatente da revolução que haveria de descrever com heróis do passado. E, até a mim, que me afasto sempre dessa Lisboa recente, onde germinam os corredores de um poder menor e medíocre, me ganha para esse olhar sensível da cidade que procuro na presença árabe e quando volta a olhar o Tejo, sinto na grandeza das palavras aquele canto que me chama do alto dos minaretes em direcção ao infinito. “Descreves as ruas, o largo, as casas, a água, dizes o nome dos lugares mas não ouço pulsar o coração da cidade. Experimenta a luz, a cor dourada sobre as casas velhas que descem a olhar o rio ou com as janelas incendiadas pelo sol ao entardecer. Estende velas brancas sobre o Mar da Palha. Amarra ao cais os grandes transatlânticos. Não há sinais das lágrimas mas não é possível apagar a memória. Falam no marulhar da água, na fala dos poetas.” Quase rendidos guardamos ainda um resto de fôlego para o fim, pois não história de seres humanos sem uma amizade, sem uma grande amizade que é sempre amor e nas personagens que desfolham por estas páginas encontramos palavras ricas de entendimento, mesmo que por vezes a tristeza se interponha entre um sorriso. Deleitamo-nos a ler. “«Por vezes uma ou outra nuvem , aproveitando a distância física, interpõe-se entre nós. Mas nós sopramo-la com os lábios da nossa pura amizade, com os pulmões da nossa vontade e o azul vem de novo cercar os nossos peitos. Bate devagar, coração, sorri a este sol de Fevereiro e, porque nada mais podes alcançar, colhe-o como uma rosa de fogo e aquece com ela os teus membros frios. E tu, carta, diz-lhe que os meus braços só a ela cingirão com a mansidão do voo dos pássaros pela tarde, com o murmúrio brando de rios alimentados pelas fontes suavíssimas da terra e sem as cóleras golfadas das nuvens que tombam iradas do céu. Diz-lhe que estas palavras saem gota a gota com os lábios entreabertos como se dissesse um poema, como palavras namoradas ditas rosto a rosto»”. Lágrimas de nostalgia descem lentamente a colina do castelo, rompendo por entre as ruelas e as muralhas procurando o grosso caudal do rio e deixamos que as águas nos levem na doçura das tardes. Quase sentimos pena, sentimos mesmo, uma imensa pena quando o livro chega ao fim, quedamo-nos até com a sensação que o autor findou antes do tempo. Resta ainda o porquê do título. Quem é Youkali? Borges Coelho vem um pouco atrás e diz-nos, esclarece essa dúvida inquieta:
Youkali é o país dos belos amores partilhados…
É a libertação
Que todos esperamos para amanhã
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