LEITURAS
Uma semana de férias, proporcionou-me umas horas de leitura como há muito não acontecia. Numa semana dei comigo a ler três livros sendo que dois deles me deram um prazer especial. Um desses livros foi uma releitura. Encontrei-o há vinte anos atrás, mas por razões que já não lembro, desapareceu. Recordo, contudo, que na primeira leitura sublinhei imensas frases, afirmações e reflexos do autor. Há cerca de um mês, tentei junto da Bertrand saber se haveriam alguns números que tivessem ficado esquecidos nas prateleiras e, para surpresa minha descubro que existe uma nova edição da pequena obra que procurava.
Stig Dagerman foi um escritor sueco autor de imensas obras e vida curta. Da leitura dos seus livros ressalta um certo sofrimento pela vida, pela vivência do ser humano. Estes aspectos aparecem de forma bem vincada nesta “A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer”. Este título é desde logo explicado nas primeiras letras do livro: “Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte, certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tão pouco me legaram o disfarçado furor do céptico, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.” Impressiona a sua incapacidade de se localizar em qualquer dos espaços que lhe permitiriam ter a fé que afirma ser a essência da vida, interrogando-se, “Como posso, assim, viver a felicidade?” E insiste nesse discurso de posicionamento contraditório. “Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a! Mas tenho o quê, entre os dedos? Se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro – um arco de palavras com assombro reteso, um súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.” É interessante os aspectos que coloca como resposta e mais interessante ainda juntar os poetas aos prisioneiros. Não sei se a intenção mostrar a prisão em que se encontram as palavras. Creio que não, pois adiante, será nelas que encontrará a vitória que derrotará a solidão. Mas, a pergunta que deixa às suas interrogações é tão contraditória como a anterior: “Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho”.
Num segundo capítulo parece reflectir sobre a liberdade. “E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus actos, por isso tudo me pode ser desculpado.” E continua a confrontar a esperança e a derrota, o alimento do sonho e a ideia de não vale a pena. “Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem reflectida do desespero. De facto, assim que o desespero me diz - «perde a esperança, o dia não passa de um momento de trevas entre duas noites», há uma falsa voz que me grita – «tem confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias»". Quase nos deixamos arrastar para este confronto, o qual, aliás, vive nas nossas reflexões e, momentos existem que não sabemos onde colocar as trevas e Dagerman termina este momento com uma afirmação que me parece feliz na sua construção, reconheço até uma beleza sedutora. “É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.” Seduziu-me esta viagem. Por vezes, questiono-me, até que ponto, amar também não é uma dessas viagens imprevisíveis entre lugares que não existem. Afinal, a maior dos nossos amores não ficam como o consolo, uma necessidade impossível de satisfazer? Ou estarei a confundir amor com paixão? É possível, pois, não sou eu que afirmo que amor é uma grande amizade. Sou e não tenho dúvidas que amo muito as minhas melhores amigas, tanto mesmo, que não seria capaz de amá-las!
Apesar da escassez do ensaio do autor não sobra aqui tanto espaço que permita comentar todas as suas reflexões, mas na parte final, volta a atrair-me a atenção de uma forma muito particular: “Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu pedido só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se sempre pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar com defesa, então será ilimitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo. É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.”
Deixa-nos assim, como fim deste momento de palavras, algum consolo, uma mensagem de viver, mesmo que o caminho seja feito sozinho. No interior do seu discurso tinha já segurado esse voo, “A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anónima chamada população mundial, sou também uma unidade autónoma”.
Contudo, num momento desta reflexão sobre o conteúdo do homem e da vida construída por este, deixa transparecer a grande angústia que alimenta o seu ser: “A depressão é uma boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo”. Stig Dagerman acabará por suicidar-se a 4 de Novembro de 1954, na sua garagem. «Um acidente do trabalho do autor consigo próprio», escreveu o seu biógrafo, Olof Lagercrantz. A sua vida de 31 anos ter-se-á tornado um símbolo para a jovem literatura sueca.
Stig Dagerman foi um escritor sueco autor de imensas obras e vida curta. Da leitura dos seus livros ressalta um certo sofrimento pela vida, pela vivência do ser humano. Estes aspectos aparecem de forma bem vincada nesta “A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer”. Este título é desde logo explicado nas primeiras letras do livro: “Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte, certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tão pouco me legaram o disfarçado furor do céptico, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.” Impressiona a sua incapacidade de se localizar em qualquer dos espaços que lhe permitiriam ter a fé que afirma ser a essência da vida, interrogando-se, “Como posso, assim, viver a felicidade?” E insiste nesse discurso de posicionamento contraditório. “Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a! Mas tenho o quê, entre os dedos? Se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro – um arco de palavras com assombro reteso, um súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.” É interessante os aspectos que coloca como resposta e mais interessante ainda juntar os poetas aos prisioneiros. Não sei se a intenção mostrar a prisão em que se encontram as palavras. Creio que não, pois adiante, será nelas que encontrará a vitória que derrotará a solidão. Mas, a pergunta que deixa às suas interrogações é tão contraditória como a anterior: “Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho”.
Num segundo capítulo parece reflectir sobre a liberdade. “E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus actos, por isso tudo me pode ser desculpado.” E continua a confrontar a esperança e a derrota, o alimento do sonho e a ideia de não vale a pena. “Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem reflectida do desespero. De facto, assim que o desespero me diz - «perde a esperança, o dia não passa de um momento de trevas entre duas noites», há uma falsa voz que me grita – «tem confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias»". Quase nos deixamos arrastar para este confronto, o qual, aliás, vive nas nossas reflexões e, momentos existem que não sabemos onde colocar as trevas e Dagerman termina este momento com uma afirmação que me parece feliz na sua construção, reconheço até uma beleza sedutora. “É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.” Seduziu-me esta viagem. Por vezes, questiono-me, até que ponto, amar também não é uma dessas viagens imprevisíveis entre lugares que não existem. Afinal, a maior dos nossos amores não ficam como o consolo, uma necessidade impossível de satisfazer? Ou estarei a confundir amor com paixão? É possível, pois, não sou eu que afirmo que amor é uma grande amizade. Sou e não tenho dúvidas que amo muito as minhas melhores amigas, tanto mesmo, que não seria capaz de amá-las!
Apesar da escassez do ensaio do autor não sobra aqui tanto espaço que permita comentar todas as suas reflexões, mas na parte final, volta a atrair-me a atenção de uma forma muito particular: “Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu pedido só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se sempre pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar com defesa, então será ilimitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo. É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.”
Deixa-nos assim, como fim deste momento de palavras, algum consolo, uma mensagem de viver, mesmo que o caminho seja feito sozinho. No interior do seu discurso tinha já segurado esse voo, “A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anónima chamada população mundial, sou também uma unidade autónoma”.
Contudo, num momento desta reflexão sobre o conteúdo do homem e da vida construída por este, deixa transparecer a grande angústia que alimenta o seu ser: “A depressão é uma boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo”. Stig Dagerman acabará por suicidar-se a 4 de Novembro de 1954, na sua garagem. «Um acidente do trabalho do autor consigo próprio», escreveu o seu biógrafo, Olof Lagercrantz. A sua vida de 31 anos ter-se-á tornado um símbolo para a jovem literatura sueca.
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