Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

12 setembro, 2006

CONTO

Um Conto
Sentiu uma dor imensa nas pupilas e só com muita dificuldade conseguiu reabrir os olhos para tentar perceber o que ocorria em seu redor. Com uma lentidão que não controlava foi-se voltando e apercebeu-se que o sol brilhava com intensidade. A primeira percepção que teve foi do cheiro, um odor intenso e estranho que tardou em identificar com queimado. Estava agora com o tronco suportado pelo cotovelo esquerdo, mas as pernas doíam-lhe, pareciam inertes. A memória regressava em pequenos passos, com intervalos, e quando pôde distinguir as colunas de fumo ao longe, já foi maior a lembrança de como tinha chegado até ali, ao termo da Alfama.
Fora numa manhã linda como esta, mas sem o cheiro de incêndio e sem a memória da morte, que nascera numa casa térrea encostada às muralhas, mesmo junto à porta que dava para o rio, chamada Porta do Mar. Como veio ao mundo logo após uma noite de lua cheia, puseram-lhe o nome de Fátima alhmed allah, a abençoada por Deus. Tinha a pele escura, mas morena e não negra, cor noz-moscada como a que chega do oriente vinda de Sevilha.
Alusbuna era já então uma grande cidade, mas cresceu sempre ao longo destes dezassete anos passados. A infância passou-a ali, metade dentro de água e outra metade correndo pela Ribeira. Como o crescimento arrasta deveres, começou a conhecer o silêncio de casa, a vida doméstica e as obrigações familiares. Sempre que lhe era possível e o cortejo dos que a rodeavam, se distraía, escapulia-se até à margem e contemplava a imensidão das águas e as chegadas e partidas de longas escunas que vinham das lonjuras do mar que nunca tinha visto. Diziam-lhe que era imenso, tão longo que se podiam andar dias e noites sem ver terra nem lhe encontrarem o fim. Uma ocasião tinha conseguido sair a muralha pela Porta do Cemitério, mas foi tudo tão rápido que pensa não ter visto o mar, era apenas o rio, extenso, muito extenso, mas não era ainda o mar.
Há dias quando passaram os festejos do solstício do verão, foi prometida em casamento. Não conhece o noivo, naturalmente, mas quando se dirigia para a mesquita viu um rosto bonito e jovem, como o de um guerreiro e desejou guardá-lo só para si. Ele também pressentiu o olhar dela por sob o véu e aproximou-se. Chama-se Ibn Iuçufe Ahmed, o escolhido do céu. Prometeu procurá-la e Fátima partiu ansiosa.
Nunca tinha sentido algo parecido e não sabia o que pensar. Nessa noite não dormiu e de madrugada escapuliu-se e foi espreitar o rio. Foi então que reparou na imensa cortina de caravelas dos infiéis de Cristo. Pensou que sonhava, mas após ter esfregado os olhos via com mais nitidez a enorme cruz desenhada nas velas dos barcos.
Dias depois assaltaram a cidade, em nome de Deus, dizem. Arrasaram tudo na sua passagem. Os combates foram muitos e intensos, mas os cavaleiros do Deus cristão eram mais e estavam melhor armados. Durante vários dias, correu desorientada de lado para lado tentando escapar à loucura de homens perdidos. Ibn Iuçufe, o seu amado, o desejado do céu, partiu para as nuvens logo nos primeiros dias, espetado pela seta certeira de uma besta próximo da Porta de Alfofa. Procurou os seus, mas não os encontrou. Evitou regressar a casa, pois foi por ali que os infiéis venceram as defesas mouras e destruíram tudo. Foi apanhada quando tentava esgueirar-se por uma fenda da muralha. Eram três, um deles, cavaleiro. Agarraram-na, rasgaram-lhe a roupa e enquanto se riam, divertiram-se com o corpo. Pouco mais se lembra e não sabe como ficou viva. Acabou por sair e agora está ali a olhar o mar que nunca tinha visto. Está só e preferia ter morrido. Afinal, em nome de um Deus, roubaram-lhe quem amava e apesar de ser abençoada por outro Deus, este esqueceu-se dela quando mais precisou dele. Está sem nada, sem ninguém e sem futuro e tudo..., em nome de Deus. Corria o ano do Senhor de mil cento e quarenta e sete.


Escrevi isto como recordação permanente
Do meu sofrimento. A minha mão perecerá
Um dia, mas a grandeza ficará.

(Inscrição árabe na Sé Velha de Coimbra)

Serafão, 02 de Julho do ano da graça de 2004. Para a Ana a quem prometi um conto.

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