O MUNDO EM QUE VIVO
QUAL 11 DE SETEMBRO?
Para ser verdadeiro, não sinto razões para recordar, mas impõem-me essa lembrança. Há vários dias que fazem questão que eu não esqueça, todos os dias, todas as horas, qualquer que seja o momento, avivam-me a memória sobre o 11 de Setembro, o dos Estados Unidos, claro.
Sou daqueles que não sabem bem o que ocorreu. Dizem que morreram 3000 pessoas e acredito. Dizem porque ninguém os contou. Simplesmente deixaram de aparecer. Em 58% dos casos realizaram-se funerais, sem corpo, os restantes nem isso. Tudo o que sobrou foi um espectáculo montado por aqueles que rodeiam, apoiam e beneficiam desse homúnculo que dá pelo nome de Bush.
A história dos Estados Unidos, é uma história de violência, desregramento e de absoluta impunidade mundial. Mais tarde ou mais cedo, os ventos hão-de semear tempestades. Em nome deste 11 de Setembro, uma girândola de morte estendeu-se pelo Iraque e o Afeganistão. Ninguém sabe quantos morreram, ninguém sabe os seus nomes, ninguém os recorda um a um como fazem do outro lado do mar. Não existem, são apenas peões num imenso tabuleiro de xadrez que os senhores da opulência comandam à distância. São muitos milhares, muitos milhares, tantos que já não se podem contar. Mas não tem importância. Na sua maioria têm cor escura, falam uma língua ininteligível e só parcialmente se parecem com esta gente civilizada que tão bem manipula todo o tipo de bombas, umas inteligentes e outras nem tanto.
Mas, recordo antes, outro 11 de Setembro, um ocorrido no ano de 1973, quando um grupo de militares chilenos, golpistas e de ideologia bastarda assaltaram o palácio presidencial de La Moneda, a golpe de bomba e mataram o presidente legalmente eleito. Nos meses seguintes, o Rio Mapocho encheu-se de cadáveres. Passavam boiando a caminho do mar. Não se conhece ao certo o número de mortos, torturados, presos e exilados. Talvez 30 000. Também não se sabe os seus nomes e ninguém os menciona no 11 de Setembro seguinte. Não têm pele tão branca como aqueles que nasceram no território dos Estados Unidos. Nesses dias, ao largo de Valparaíso, navios da armada dos EUA vigiavam e organizavam o golpe sangrento.
Em Moscovo, a criança que estava ao meu lado, tinha 4 anos, era filha de pais chilenos e nesse dia não pôde iniciar o regresso a casa. Ficou sem pátria. Meses depois, quando voltei a encontrar Pablo, já falava outra língua para além do castelhano e continuava sem pátria. Nunca mais soube de Pablo nem dos pais, deixou de contar na história do mundo. Na época ainda não existia essa tal de "comunidade internacional".
Que mágoa imensa sinto pelo mundo que me é dado viver.
Permitam-me um grito de revolta
Deixai-me hoje falar de política. Política de morte ou da morte da política. Era inevitável porque começamos a acumular demasiados mortos na memória. Esses senhoritos espanhóis que acampam na Moncloa e noutros sítios semelhantes do mundo, continuam a lançar à terra estas sementes de terror. Fazem as suas guerras, os seus roubos, os seus assaltos, acossam os povos, polvilham a terra de miséria e de miseráveis e fecham-se nos seus castelos, nas suas fortalezas para quando as bombas explodirem como ontem nos arredores de Madrid, atinjam os desgraçados de sempre, os trabalhadores, os estudantes, os emigrantes, porque foram estes que morreram ontem de facto. Uns inventam guerras, espoliam o mundo; os outros morrem.
El rio Guadalquivir
vay entre naranjos y olivos
los dos rios de Granada
bajam de la nieve al trigo
El rio Guadalquivir
tiene las barbas granate
los dos rios de Granada
uno lhanto y otro sangre
A Espanha republicana, operária e popular, a de Federico Garcia Lorca que já tinha morrido em 1939, voltou a morrer de novo ontem nas estações ferroviárias de Madrid às mãos de uns fanáticos quaisquer que nem sequer temos o direito de julgar. Uns porque são conhecidos mas estão fechados nos palácios, os outros porque andam nas margens do mundo mas não os conhecemos. Morreram inocentes? Não. Não morreram inocentes. Morreram homens e mulheres, mas não morreram inocentes. Estes se existem são as crianças que ainda olham para o azul do céu com a pureza das estrelas. Nos adultos não há inocentes. Somos todos nós, com os nossos silêncios, os nossos votos como eles dizem, os nossos medos, a nossa indiferença, que pactuamos com o poder desses senhores que dominam financeiramente o mundo e em nome de cujos interesses se travam todas as guerras nas quais, só nós morremos. Esse senhorito que governa o Estado espanhol há anos, prometeu que acabava com a identidade dos povos que habitam esse território que dá pelo nome de Espanha, nem que fosse em cima de muitos mortos e os cidadãos do Estado continuam a votar nele. Sharon prometeu aos israelitas que traria a paz em cima de uma pilha de cadáveres e já ganhou duas vezes as eleições. Portanto, quando morremos, não somos inocentes, mas antes comparsas desta miséria que ajudamos a semear. Desgraçadamente comparsas porque continuamos a não ter nada, mas não inocentes.
Quando o rácio de rendimentos reais per capita entre os países mais ricos e mais pobres do mundo que era de 3 para 1 no início do século XIX, passou em 1900 para 10 para 1 e em 2000 de 60 para 1, quando 1% da população mundial tem hoje a mesma riqueza que os 60% que têm menos, quando um bilião de seres humanos vivem com menos de 1 € por dia, estamos a lançar a semente de gente desesperada, sem nada para perder, sem nada para ganhar, capaz de conceber nas suas mentes, girândolas de terror e morte como aquela que aconteceu ontem em Madrid. Por isso, nas estações ferroviárias da capital do Estado espanhol, como antes em Bali ou em Marrocos, não foram 198 os mortos, mas mais, muitos mais. Quase todos nós morremos no amanhecer da cidade do centro da Península. Morremos porque deixamos morrer, com o nosso silêncio, a nossa indiferença, a nossa comodidade, o nosso olhar para o lado, enquanto o mundo constituído por milhões de seres humanos se vai afundando num mar de miséria, fome e desgraça. Quando em 10 anos, 4000 homens e mulheres, pelo menos contabilizados, morreram a atravessar o Mediterrâneo para tentarem alcançar a Europa, ou seja, o direito ao trabalho e a condições mínimas de sobrevivência e nós só temos uns segundos de comoção frente ao ecrã do televisor e a seguir assobiamos para o ar, estamos a lançar à terra as sementes que vão gerar homens acossados, sem saída, disponíveis para o sacrifício e para a matança colectiva. Quando o sátrapa que governa Bagdad disse no meio de um rasgado sorriso, “apanhamo-lo” referindo-se à prisão de Saddam, figura criada, sustentada e alimentada pelos senhores que ele mesmo representa, está a cimentar as tempestades daqueles que certamente ontem também terão dito, “apanhamo-los”. Os senhores do poder vão dizer as palavras de circunstância de sempre, pedir mais votos para com isso se sentirem legitimados e nós, sim nós, choraremos dois dias, colocaremos umas velas, umas flores e continuaremos no dia seguinte disponíveis para sermos os próximos sacrificados no altar dessa desgraça colectiva. É preciso que pensemos que os corpos que víamos ao longo da via-férrea, destroçados no meio das carruagens, espalhados por aquela vastidão de destruição, eram de gente pouco antes viva, gente que pensava, sonhava, acreditava que o amanhã podia ser melhor e certamente muitos lutavam por isso. Deixam-nos essa herança de não permitir que estas matanças continuem que alteremos o estado de coisas, que modifiquemos o mundo e não nos remetamos ao silêncio dos inocentes.
Desculpem este grito de revolta, mas continuo a recusar, vindo de Espanha ou de qualquer lado, os gritos de Viva la Muerte. Logo guardarei um minuto de silêncio, por todos nós, os que morreram fisicamente e os que morreram intelectualmente porque o que estão a tentar fazer de nós é de resto apenas a ideia de que agora falam as pedras. Vou guardar o meu, o nosso minuto de silêncio, não o do Senhor Aznar que mesmo num momento como este veio introduzir a Constituição no protesto sabendo que aquela não é um elemento pacífico para os povos de Espanha. Esta gente não vale mesmo nada. Contra o terrorismo sim, mas todos os terrorismos, a começar por aqueles que os Estados movem aos povos e o daqueles que governam as nossas vidas tornando-as insuportavelmente dolorosas.
Mas deixem-me continuar a acreditar. Um outro mundo é possível, feito de Homens e Mulheres livres e iguais, em direitos, em deveres e dignidade. Como escreveu Torga,
Foi a mão como um ralo a semear
que me disse que sim, que acreditasse
que a vida é um poema a germinar
e portanto, cantasse.
Cidade do Porto, nesta manhã de desgraça de 12 de Março de 2004
Deixai-me hoje falar de política. Política de morte ou da morte da política. Era inevitável porque começamos a acumular demasiados mortos na memória. Esses senhoritos espanhóis que acampam na Moncloa e noutros sítios semelhantes do mundo, continuam a lançar à terra estas sementes de terror. Fazem as suas guerras, os seus roubos, os seus assaltos, acossam os povos, polvilham a terra de miséria e de miseráveis e fecham-se nos seus castelos, nas suas fortalezas para quando as bombas explodirem como ontem nos arredores de Madrid, atinjam os desgraçados de sempre, os trabalhadores, os estudantes, os emigrantes, porque foram estes que morreram ontem de facto. Uns inventam guerras, espoliam o mundo; os outros morrem.
El rio Guadalquivir
vay entre naranjos y olivos
los dos rios de Granada
bajam de la nieve al trigo
El rio Guadalquivir
tiene las barbas granate
los dos rios de Granada
uno lhanto y otro sangre
A Espanha republicana, operária e popular, a de Federico Garcia Lorca que já tinha morrido em 1939, voltou a morrer de novo ontem nas estações ferroviárias de Madrid às mãos de uns fanáticos quaisquer que nem sequer temos o direito de julgar. Uns porque são conhecidos mas estão fechados nos palácios, os outros porque andam nas margens do mundo mas não os conhecemos. Morreram inocentes? Não. Não morreram inocentes. Morreram homens e mulheres, mas não morreram inocentes. Estes se existem são as crianças que ainda olham para o azul do céu com a pureza das estrelas. Nos adultos não há inocentes. Somos todos nós, com os nossos silêncios, os nossos votos como eles dizem, os nossos medos, a nossa indiferença, que pactuamos com o poder desses senhores que dominam financeiramente o mundo e em nome de cujos interesses se travam todas as guerras nas quais, só nós morremos. Esse senhorito que governa o Estado espanhol há anos, prometeu que acabava com a identidade dos povos que habitam esse território que dá pelo nome de Espanha, nem que fosse em cima de muitos mortos e os cidadãos do Estado continuam a votar nele. Sharon prometeu aos israelitas que traria a paz em cima de uma pilha de cadáveres e já ganhou duas vezes as eleições. Portanto, quando morremos, não somos inocentes, mas antes comparsas desta miséria que ajudamos a semear. Desgraçadamente comparsas porque continuamos a não ter nada, mas não inocentes.
Quando o rácio de rendimentos reais per capita entre os países mais ricos e mais pobres do mundo que era de 3 para 1 no início do século XIX, passou em 1900 para 10 para 1 e em 2000 de 60 para 1, quando 1% da população mundial tem hoje a mesma riqueza que os 60% que têm menos, quando um bilião de seres humanos vivem com menos de 1 € por dia, estamos a lançar a semente de gente desesperada, sem nada para perder, sem nada para ganhar, capaz de conceber nas suas mentes, girândolas de terror e morte como aquela que aconteceu ontem em Madrid. Por isso, nas estações ferroviárias da capital do Estado espanhol, como antes em Bali ou em Marrocos, não foram 198 os mortos, mas mais, muitos mais. Quase todos nós morremos no amanhecer da cidade do centro da Península. Morremos porque deixamos morrer, com o nosso silêncio, a nossa indiferença, a nossa comodidade, o nosso olhar para o lado, enquanto o mundo constituído por milhões de seres humanos se vai afundando num mar de miséria, fome e desgraça. Quando em 10 anos, 4000 homens e mulheres, pelo menos contabilizados, morreram a atravessar o Mediterrâneo para tentarem alcançar a Europa, ou seja, o direito ao trabalho e a condições mínimas de sobrevivência e nós só temos uns segundos de comoção frente ao ecrã do televisor e a seguir assobiamos para o ar, estamos a lançar à terra as sementes que vão gerar homens acossados, sem saída, disponíveis para o sacrifício e para a matança colectiva. Quando o sátrapa que governa Bagdad disse no meio de um rasgado sorriso, “apanhamo-lo” referindo-se à prisão de Saddam, figura criada, sustentada e alimentada pelos senhores que ele mesmo representa, está a cimentar as tempestades daqueles que certamente ontem também terão dito, “apanhamo-los”. Os senhores do poder vão dizer as palavras de circunstância de sempre, pedir mais votos para com isso se sentirem legitimados e nós, sim nós, choraremos dois dias, colocaremos umas velas, umas flores e continuaremos no dia seguinte disponíveis para sermos os próximos sacrificados no altar dessa desgraça colectiva. É preciso que pensemos que os corpos que víamos ao longo da via-férrea, destroçados no meio das carruagens, espalhados por aquela vastidão de destruição, eram de gente pouco antes viva, gente que pensava, sonhava, acreditava que o amanhã podia ser melhor e certamente muitos lutavam por isso. Deixam-nos essa herança de não permitir que estas matanças continuem que alteremos o estado de coisas, que modifiquemos o mundo e não nos remetamos ao silêncio dos inocentes.
Desculpem este grito de revolta, mas continuo a recusar, vindo de Espanha ou de qualquer lado, os gritos de Viva la Muerte. Logo guardarei um minuto de silêncio, por todos nós, os que morreram fisicamente e os que morreram intelectualmente porque o que estão a tentar fazer de nós é de resto apenas a ideia de que agora falam as pedras. Vou guardar o meu, o nosso minuto de silêncio, não o do Senhor Aznar que mesmo num momento como este veio introduzir a Constituição no protesto sabendo que aquela não é um elemento pacífico para os povos de Espanha. Esta gente não vale mesmo nada. Contra o terrorismo sim, mas todos os terrorismos, a começar por aqueles que os Estados movem aos povos e o daqueles que governam as nossas vidas tornando-as insuportavelmente dolorosas.
Mas deixem-me continuar a acreditar. Um outro mundo é possível, feito de Homens e Mulheres livres e iguais, em direitos, em deveres e dignidade. Como escreveu Torga,
Foi a mão como um ralo a semear
que me disse que sim, que acreditasse
que a vida é um poema a germinar
e portanto, cantasse.
Cidade do Porto, nesta manhã de desgraça de 12 de Março de 2004
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