Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

01 setembro, 2008

LEITURAS


Quando se procedeu ao restauro da Casa Grande, que foi solar dos Meneses e Montenegros, houve que demolir paredes de côvado e meio de bitola em que há um século lavrava a ruína, ocasionando-lhes fendas por onde entravam os andorinhões de asas abertas e desníveis com tal bojo que a derrocada parecia por horas. Num armário, não maior que o nicho dum santo, embutido na ombreira da janela, que a portada, em geral aberta, dissimulava atrás de si, encontrou-se uma volumosa rima de papéis velhos. Como Cide Hamete Benengeli, não posso ver um farrapo impresso que não me sobressalte a curiosidade. Com avidez fui tirando para fora cartapácios sem frontispício e sem índice, entre os quais um Mestre da Vida que ostentava unma dactiloscopia densa e salivosa, com os cantos das folhas tenazmente arrebitados, avisos e recibos da contribuição predial, uma resma de bulas da Santa Cruzada de pinto e de doze vinténs, receitas de botica, algumas traindo pelo sebo e a usura terem sido aviadas amiúde, folhinhas de anos sucessivos, e uns cadernos de papel almaço em que me palpitou matéria de bisbilhotice. Um deles, dobrado longitudinalmente, teria a sua centena de páginas e envolvia-se numa capa de pergaminho que inculcava já uma respeitável vetustez. O rótulo, em largos caracteres floreados, tinta cor de ferrugem, advertia, esmaecida mas verbosamente, do teor: Livro que há-de servir ao assentamento das coisas notáveis que assucederam na Casa Grande de Romarigães, também chamada Quinta de Nossa Senhora do Emparo. Com um epítome da origem, fundação, sítio e nobilíssima árvore de seus morgados, pelo P.e Sebastião Mendrugo, da Casa da Cachada, e seu capelão. Ano da Graça de 1680.
Deitei um olho ocioso ao palimpsesto, depois de tomar conhecimento do título. Por pouco não permiti que as raparigas do caseiro lhe esfarripassem as páginas para envoltório dos fusos, quando fiam na roca. Decifrando aqui uns períodos, além outros duma caligrafia que obedecia a um sentido interior geométrico muito outro dos nossos dias, para mais a esvair-se no papel de trapo, amarelento e manchado, perguntei-me em que nos podia interessar a vida de fidalgos como tantos mais. De facto crónicas deste jaez nem sempre são o mais edificante. Mas era enternecedora a simplicidade com que o historiógrafo memorava os serões gastos, até altas horas, espírito tendido sobre a pena de pato como o lavrador sobre a rabiça, olhos a doerem-lhe da chama reverberada pelo latão no candeeiro de três bicos. Foi este sentido de cortesia, que as pessoas idosas têm por tudo o que ocupa um lugar no mundo e significa acender-se em suas almas a luz da piedade, que o salvou. O relato do reverendo Mendrugo estendia-se por altas e compactas laudas, verdade seja que numa letra encadeada, dentro de cujos arabescos cabiam períodos inteiros de Lima Bezerra, que discorreu por esta corda, e costumava fazê-los extensos como léguas.
O outro manuscrito, em letra especiosamente torneada, chamava-se Vida de D. Luís António de Antas e Meneses, sargento-mor de Milícias e procurador às Cortes de 1828. Ao que se depreendia do estilo, abundante em ciência hieráldica e genealógica, era obra dum linhagista do Alto Minho, tão amigo de Deus e do rei como inimigo dos malhados, o senhor Manuel Afonso, de Venade. A sua personalidade de cronista meticulosamente fidedigno, em dia com a pátria e o seu partido, ressaltava do esmero com que arredondava a pança garrafal das letras e lhes projectava as hastes para o zénite. Em suma, na caligrafia, ora direita como lanças, ora cheia e empolada como cabaços, pintava-se o homem como dizem que sucede aos pintores quando fazem retratos. Uma fé, ora hirsuta, ora serena e espapaçada, exalava-se da prosa que só a copeira esotérica da Casa Grande permitira furtar às auras do liberalismo triunfante.
O terceiro caderno tinha ares de copiador. Copiador de coisas e loisas, numa escritura igual, muito indolente e de traços farfalhudos como as caneiras de milho desta comarca frumentosa. Era o vasto repositório duma ciscalhada inominável, anedotas, documentos tabelionares, censuras a livros pelo P.e José Agostinho de Macedo, sinal de que o escriba propendia para literato, e até cartas de amor. Estas estadeavam em título autónomo dentro do vasto armazém de ferro-velho: Cartas de dois amantes verdadeiros.
Quanto aos autores de tal correspondência, por dedução, à vista de certos documentos e papéis, não tive dúvidas de concluir quem fossem. Mercê doutros informes de vária procedência, esclareceu-se finalmente o romance de amor, um romance silencioso e profundo como as águas dos grandes rios, e por isso mesmo cheio de sainete, sem embargo do seu acerbo pecado.
De modo que em grande parte deste livro eu não fiz mais que marchar na esteira dos cronistas que tenho por veros, uma vez que não tinha interesse em ser mentirosos. O padre era-o por natural lisura e dever de ofício. Os outros que ganhavam em prestar um falso testemunho quando os não requeriam no pretório? Finalmente, as últimas e extravagantes páginas do livro são de minha lavra. Às outras, sacudi o bolor do tempo e reatei o fio de Ariadna, interrompido aqui e além. É escusado dizer que inutilizei muito material, glosas, apostilas, considerações baratas e vagarosas, todas elas a ressumarem uma filosofia de algibeira, incompatíveis com a era de Einstein e dos aviões de jacto. Os antigos tinham fôlego de baleia e ignoravam o valor monetário do tempo, bem como o valor higiénico da vírgula e do ponto e vírgula. Em matéria de estilo, a minha pena passou por cima como o ferro de engomar eléctrico na camisa quando volta do estendedoiro. Vamos com o Seráfico, se algum dia houve escrivão da puridade mais fiel ao assunto e às fontes históricas, que me cortem a mão que atraiçoou.
Todavia quero confessar os meus pecados. Um confrade, académico de Argamasilha ou lente de Coimbra, já não sei bem, a quem li alguns capítulos deste livro, exclamou, mais que judicioso, salomónico de todo:
- Mas afinal o que V. fez foi um romance…
- Um romamce…? Deus me livre! A minha ambição foi bem outra. Isto é monografia, história local, história romanceada, se quiser, agora novela, abrenúncio! Mal de mim se escorreguei para tais enredos e labirintos. No romance, o escritor escolhe os episódios; na história, são os episódios que se lhe vêm oferecer. Estão tabelados, não há que lhes fugir. Ora o que eu tentei foi desempoeirar velhos e particularíssimos sucessos que, de resto, pouco pesaram na marcha do mundo. Romance…!? Se me saiu romamnce, aconteceu-me a mesma coisa que a um triste e tosco carpinteiro dos meus sítios, de quem toda a gente zombava, decerto por milagre desenfadado do Espírito Santo: estava a fazer um gamelo para o cão e saiu-lhe uma viola.

Lisboa, Primavera de 1957

AQUILINO RIBEIRO


Foi uma leitura muito agradável e ao mesmo tempo uma descoberta, esta viagem ao longo do tempo e da história com os riquíssimos pormenores de Aquilino, nessa terra tão bela e tão pouco conhecida de Paredes de Coura






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