Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

26 julho, 2008

LEITURAS


O último título de Antonio Tabucchi parece não nos fornecer pistas para a história que nos vai contar, mas quando Tristano principia o relato da sua vida para que o escritor o escute e a verta em romance já não conseguimos estancar o interesse pela leitura, essa vontade de levar até ao fim de um só fôlego o conhecimento de tudo o que nos quer relatar. Entre a vida do guerrilheiro que de tantos combates só lhe restaram os sonhos, a denúncia das palavras e das imagens com que nos semeiam de enganos a vida, os amores que sempre se atravessam no nosso caminhar porque fazem necessariamente parte de nós, até à crítica e ao sarcasmo com que desmonta o discurso dos vencedores e o seu conceito de liberdade aparentemente infinito mas rigorosamente sem significado. Para que serve a homem que morre à fome, a liberdade de expressão? Mas mais do que as palavras que possamos escrever, o melhor mesmo é transcrevermos aquelas que formam a beleza do romance.
“E de certa maneira isto tem a ver com aquilo de que te encarreguei… como te disse há pouco, vais precisar de paciência porque a minha hora ainda está para chegar, mas foi por isso que acedeste de imediato a vir trotar comigo, para acompanhares o moribundo… Só eu conheço o meu círculo, sei quando há-de chegar o momento, é certo que quem nos escolhe é a hora, mas também é certo que se tem de concordar que ela nos escolha, a decisão é dela mas no fundo também tem de ser nossa, como se fosse nossa a escolha e nos limitássemos a capitular frente a ela…
Por enquanto vamos trotando juntos, aparentemente seguimos em frente, embora na realidade estejamos a recuar, porque eu sou um elefante que te chamou para recuar, mas recuo para chegar ao meu círculo, que fica à minha frente. Tu entretanto ouve e escreve, quando chegar a hora da despedida eu digo”.
Tristano, está no fim da vida, sabe que pouco tempo lhe resta para passar a outro estado de tempo e outro momento físico. Antes que aconteça essa transformação que o afastará dos sonhos, chama um escritor a quem conta a sua vida e começa todo este relato com a história do elefante que quando pressente a morte se afasta do grupo e trota até encontrar o círculo onde decide acabar os seus dias enquanto ser vivo. Neste trajecto é acompanhado por um outro elefante, o qual após a chegada ao destino daquele que vai morrer, regressa ao grupo. Esta ideia de juntar ambas as histórias de vida, parece-me tão sublime que logo de início nos deixa sem palavras. Quantos de nós conseguiremos assumir esse momento dramático com a dignidade de quem sabe que não nos resta outro destino?
“Escritor, o meu coração é todo teu, só penso em ti… sabes, é realmente estranho, chamei-te e só pensava em mim, não pensava de todo em ti, e desde que chegaste, embora não tenha proferido uma só palavra, comecei a pensar em ti. Pelo simples factor de me estares a escrever. E parece-me por vezes que tu és um pouco de mim, tanto assim que pergunto a mim próprio se aquilo que eu te conto é meu porque sou eu que o conta, ou se é teu porque és tu quem o escreve…”
Esta troca, este jogo, esta dança das palavras, dos significados e dos sentidos das mesmas, tem o interesse acrescido num homem esgotado pela dor, pela morfina, sarcástico com a vida. Noutro contexto, podia até ser uma carta de amor, face à beleza do seu conteúdo.
“Que se passa contigo, Tristano, diz-me, perguntou a Guagliona contemplando o mar que trazia espelhado nos olhos. Tristano abraçou o horizonte num gesto largo e liberal. Eu devia defender a liberdade que procurei e tanto prezo, mas para ser sincero começo a ficar sem saber o que isso é, embarquei numa aventura que não me diz respeito, não sei porquê, quando andávamos na serra era tudo tão claro, ou pelo menos parecia, e agora não há nada que seja claro, e eu quero perceber…”
Para tantos de nós que efectuamos um caminho idêntico, parecido, que tanto prezamos essa liberdade que nos permite caminhar até encontrarmos o caminho dos outros, o quão percebemos estas dúvidas de Tristano que a história um dia se encarregará de colocar no seu devido lugar, a liberdade e os homens que verdadeiramente tudo fizeram para a abraçar na alma.
“…Por vezes, ao princípio da noite, contemplava as luzes da planície e pensava nos tempos idos, naqueles dias em que o futuro do seu país se decidia na serra… todos contra os nazi-fascistas, não restavam dúvidas quanto a isso, mas o futuro era outra coisa. Futuros, sei-o agora melhor do que nunca, é o que mais há,…”
De facto há momentos na vida que aqueles que se nos opõem atingem níveis de crueldade tão elevados, quer seja, em termos económicos, sociais ou políticos que a esmagadora maioria da sociedade se coloca do lado oposto e todos empunham os remos que faz mover a mesma nau, mas esse barco tem uma rota idêntica à linha de um comboio com diversas estações e em cada uma delas vão saindo alguns, pelo que no momento final da viagem já só se encontram os mais coerentes, os mais idealistas, os mais sonhadores e, quase sempre, os que mais se sacrificaram em nome do que foi a vontade comum. Os interesses, pessoais, de grupo, mesquinhos e de soberba vão deixando pelo caminho uma quantidade de elementos que chegaram a remar, mas na verdade, alguns, não deram mais do que meia dúzia de remadas, daí que Tristano vem a descobrir que o futuro não era o mesmo para todos.
“Sei lá… às origens daquela sua civilização pela qual empunhara a espingarda, ou que tomava como sua, coitado dele, coitado desse ex-soldado que foi para a guerra devidamente equipado com o capacete da liberdade, não fosse aleijar-se – e a civilização do Ocidente, escritor… descalça lá esta, não será acaso como a sombra na paisagem?... para lá do oceano, um outro Ocidente, com um archote numa das mãos e uma bomba atómica na outra, pretende que o verdadeiro Ocidente é ele, em que ficamos, afinal, de que lado se põe o sol? Pois é, pois é… Enfim… estou cansado… Sinto-me subitamente cansado, sentia-me tão arribado… há-de ser por causa desta história da liberdade e da igualdade… é como se me dissessem, cidadão, escritor, aqui tens as cotações diárias da igualdade fornecidas a todos os ouvintes da nossa emissão livre da manhã graças aos dados do instituto nacional de avaliação da liberdade, o índice da bolsa de valores da igualdade sofreu uma forte baixa, devido ao facto de um país situado um pouco a sul do nosso, povoado por gente pobre e ruim, precisar de uma lição de liberdade, razão pela qual toda a bolsa se deslocou para sul… caros ouvintes, informamos que a nossa bolsa livre abriu uma agência no estádio de futebol da capital desse país com uma elevada taxa de lucro, trata-se de um método concebido pela nossa nova geração de economistas, que retoma o velho sistema do produtor ao consumidor, em que cada índice da bolsa está ligado a um dos testículos desses clientes nefastos, sinto que a cada tentativa de subida da bolsa local é desferida uma forte descarga eléctrica, de que o consumidor desse país se apercebe inequivocamente… trata-se de um método personalizado… para os clientes do sexo feminino o índice da bolsa actua sobre a zona terminal dos ovários ou no próprio feto, em caso de gravidez… Escritor, o índice da liberdade, que é capilar, chega aos clientes de todo o mundo, a nossa pátria é o mundo inteiro, a nossa lei é a liberdade, e acalentamos dentro de nós um nobre pensamento…”
Tristano é brilhante nesta sátira à liberdade e ao chamado Ocidente que mais não é que um sistema de poder que sustenta a riqueza obscena de uma minoria, riqueza essa espoliada a uma maioria que cada vez menos tem. Nesse processo, a liberdade aparece com um valor que alcança o domínio da farsa, pois aparece-nos como significando um valor absoluto e na verdade para nada serve. Tristano faz uma ligação directa entre as subidas da bolsa e a tortura infligida aos povos sul-americanos pelos militares golpistas que encheram campos de futebol com milhares de prisioneiros políticos. Se conseguíssemos esquecer por momentos os nossos pequenos interesses imediatos e nos dispuséssemos a reflectir um pouco sobre esta sátira que Tristano desenvolve, é muito provável que o mundo não seria o mesmo.
“Sabes afinal quando tudo se tornou claro a seus olhos? Quando tudo já parecia claro e chegara ao fim, no dia seis de Agosto de quarenta e cinco. Às oito e um quarto da manhã, se também queres saber a hora. Nesse dia Tristano compreendeu que o monstro finalmente derrotado começava a dar lugar à monstruosidade dos vencedores…
(…)
Enganam-se, não foram inúteis, foram até da maior utilidade para os vencedores, deram assim a entender ao mundo que os novos donos eram…
(…)
Não só era possível, era talvez a única coisa sensata que se podia fazer, porque se uma vez derrotado o monstro tu deixas de acreditar nos que venceram o monstro, nada mais resta senão acreditar nos teus próprios sonhos…”
Tristano conduz-nos por uma estrada de clareza nas ideias do mundo em que vivemos. Tudo se tornou claro para ele nesse amanhecer em que a bomba atómica iluminava Hiroshima numa das tragédias mais criminosas da história da humanidade e nesse instante compreendeu que a monstruosidade dos vencedores sobrepunha-se ao próprio monstro e quando descobrimos que também não é possível acreditar nos vencedores por se revelarem outro monstro ainda maior do que o anterior, mesmo que coberto pelo manto da liberdade, resta-nos alimentar-nos dos próprios sonhos. Afinal serão eles, um dia, a permitir novo salto na história da humanidade.

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