Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

23 outubro, 2007

LEITURAS


Voltei a ler Marguerite Yourcenar e o prazer que sinto perante textos tão ricos que quase não compreendemos como palavras simples constroem frases tão sublimes, tão elucidativas e tão eloquentes sobre aquilo que se debruçam. Descrever a família e o percurso ao longo da história que poderia parecer um acto banal, transforma-se na sua escrita, num texto sedutor, atractivo e que lemos como se saciássemos a sede de uma longa caminhada. Só lamentamos que os livros desta senhora, aristocrática e culta, também tenham um fim como todos os outros.
Apesar de uma vivência acima do comum dos mortais, Marguerite Yourcenar consegue transmitir uma visão da vida e das dificuldades humanas que deixa bem expressas em, algumas das frases como aquelas que aqui não resistimos a mencionar.
Mas já e um pouco por toda a parte, o homem. O homem ainda disperso, furtivo, deslocado às vezes pelas últimas descargas dos glaciares muito próximos, e que deixou poucos vestígios nesta terra sem cavernas e sem rochedos. O predador-rei, o carniceiro dos animais e o assassino das árvores, o caçador que ajusta as redes onde se estrangulam as aves e as estacas onde se empalam os animais de pêlo; o perseguidor que espia as grandes migrações sazonais para conseguir a carne seca dos seus Invernos; o arquitecto de ramagens e toros descascados, o homem-lobo, o homem-raposa, o homem-castor reunindo em si todo o engenho animal, aquele sobre quem a tradição rabínica diz que a Terra recusou a Deus uma mão-cheia de lama para lhe dar forma, e sobre quem os contos árabes asseguram que os animais tremeram quando viram esse verme nu. O homem com os seus poderes que, avaliem-se como se avaliarem, constituem uma anomalia no conjunto das coisas, com o seu dom temível de ir mais longe no bem e no mal do que o resto das espécies vivas por nós conhecidas, com a sua horrível e sublime faculdade de escolha.
Esta definição simples e curta dos primórdios do ser humano é de uma extraordinária rudeza e verdade. Conseguiu desenhar de forma magnífica o que na verdade tem sido o ser humano ao longo da história e quando nos diz que tem o dom temível de ir mais além no bem e no mal caracteriza o ser humano que somos e que aparece, no mínimo, nos momentos de grande tensão, como um grande e maléfico predador.
Os dois momentos mais revolucionários da história são provavelmente aquele em que um asceta hindu compreendeu que um homem purificado de toda a ilusão se tornava mestre do seu próprio destino, saía do mundo, ou só lá permanecia para servir o resto das criaturas, e chegava a ser superior aos próprios deuses, e aquele em que alguns judeus mais ou menos helenizados reconheceram no seu rabi um deus voluntariamente comprometido com a vida e a dor humanas, condenado tanto pelas autoridades civis como pelas religiosas, e executado pela polícia local sob o olhar do exercito pronto a manter a ordem. Deixemos por ora a discussão da sabedoria budista, que me atingirá por volta dos vinte anos. Quanto à segunda incrível aventura, a Paixão de Cristo, que afronta todas as instituições humanas, tão poucos cristãos do nosso tempo estão impregnados dela que custa a crer que tenha penetrado profundamente esses convertidos galo-romanos. Algumas almas puras abriram-se certamente ao sublime do Sermão da Montanha: durante a minha própria vida vi isso acontecer a dois ou três seres. Bastantes corações inquietos exaltaram-se com essas esperanças de salvação além-túmulo que proliferavam também na época dos cultos pagãos. A maior parte fizeram à sua maneira a grosseira aposta de Pascal: o que tinham a perder com a troca?
Um homem purificado de toda a ilusão? Quererá dizer um homem sem nada, será esse que será o mestre do seu próprio destino? Não sei, mas na verdade, ou se combate o estado de coisas em que estamos, ou seja, um poder em que uns dominam os outros em resultado daquele homem predador que nasceu no momento em que as sociedades se dividiram pelo facto de uma parte assumir a posse do que era resultado do trabalho comum. Em todo o caso, uma espécie de religião em ambos os momentos que atira o homem para lá da vida. Talvez assim se dispa das ilusões. Afinal não são estas fantasias que construímos e nos ajudam também à sobrevivência? É que também é necessário acreditar, mesmo sabendo que não alcançamos.
Essas pessoas que se sentem príncipes até onde se estende a sombra da sua torre sineira e ondulam as suas belas terras verdes seriam para Saint-Simon abaixo de cão, grãos de pó se por acaso tivesse que falar delas.
Sentir-se senhores até onde chega a sombra da sua própria torre é uma frase de uma grandeza espantosa pela forma como está construída. Quanta gente menor não se julga grande e não consegue ir além da sua própria sombra. Que exuberância!
Mas agir e pensar como toda a gente não é nunca uma recomendação; nem sempre é uma desculpa. Em todas as épocas há pessoas que não pensam como toda a gente, quer dizer, que não pensam como os que não pensam.
Pois. De facto, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não, o que é o mesmo que dizer que não pensam como toda a gente porque na verdade o que toda a gente normalmente faz é não pensar. É mais cómodo e nas sociedades em que vivemos torna-se mais lucrativo. Como no poema da Sofia, porque os outros são hábeis mas tu não.
Toda a arte barroca glorifica o desejo do poder; a sua responde especificamente à necessidade de reinar, de possuir e de gozar de uma sociedade dourada alcandorada bem no alto da Europa da Guerra dos Trinta Anos.
Por mim tenho um conflito com a arte barroca, com esse afã de mostrar poder, mostrar riqueza. Mesmo em sociedades como a portuguesa, miseráveis do ponto de vista social, esse afã de mostrar riqueza, arrepia e se percebermos que esse desejo aparece, sobretudo, nas igrejas, nos altares de Deus e dos santos, ainda mais repugna.
Os bairros populares regurgitam de uma humanidade vociferante e sórdida que os poemas em dialecto de Belli evocam quase com ternura; o contraste é brutal entre a miséria dos pobres e o luxo das famílias papais e bancárias; não o é menos nos nossos dias entre a súcia dourada da dolce vita e os habitantes das grutas e dos bairros de lata.
Esse contraste brutal que Marguerite Yorcenar aqui relata em relação a um passado ainda distante e que continuava nos dias em que escrevia e se mantém com uma crueza que revolta, pelo menos, ainda revolta uma quantidade apreciável de seres humanos, contra essa súcia dourada como lhe chama que vive empoleirada sobre o trabalho dos pobres.
Por volta de 1935, dei-o, num desses impulsos de que nunca nos devemos arrepender, a um homem que amava, ou julgava amar.
Esta é uma das questões em que mais estou de acordo com a escritora. Quando amamos, entregamos quase tudo de nós próprios, pois amar é isso mesmo, uma entrega, desde o gesto mais simples à intimidade e, se mais tarde, esse amor se esvair, por falta de alimento ou por um daqueles equívocos que não sabemos explicar, não nos arrependamos, pois tudo o que demos e oferecemos, fizemo-lo nesses momentos extraordinários em que o sentimento nos projecta para a dádiva.
E este homem e esta mulher que formam um casal respeitado, têm duas belas crianças, arfam ainda às vezes na mesma cama, se querem bem, no fundo, de que um verá morrer o outro, tomam assim, num silêncio educado, ou com réplicas que mal o são, perto de doze mil pequenos almoços.
É uma das frases que nos espanta pelo facto de em tão poucas e simples palavras conseguir de forma magistral caracterizar a vida de tantos casais que escondem por trás de um cenário, uma vivência amorfa, sem brilho e sem o que estimamos como amor. Fala-nos de um casal respeitado, quer dizer, aos olhos dos outros não há nada a dizer, têm filhos, ainda arfam na cama, mas muitos já nem arfam e, por fim, aquelas duas palavras que arrasam, num silêncio bem educado. Apesar disto, conseguem tomar doze mil pequenos almoços juntos. Quantos casais conseguem esquecer essa falta de amor através de um silêncio respeitado? Não sei, mas creio que muitos.
Meios de comunicação maciços ao serviço de interesses mais ou menos camuflados farão correr sobre o mundo, com visões e barulhos quiméricos, um ópio do povo mais insidioso do que qualquer religião jamais foi acusada de espalhar. Uma falsa abundância, dissimulando uma crescente erosão dos recursos, dispensará alimentos cada vez mais adulterados e divertimentos cada vez mais gregários, panem et circenses de sociedades que se julgam livres.
Que assombrosa caracterização da sociedade em que vivemos. Chamar à propaganda ópio do povo e insidioso só de alguém grande na escrita e na vida como a autora. Afirma ainda que sociedades que se baseiam no pão e circo e se julgam livres. Como é possível como uma senhora como Marguerite Yourcenar muito acima do quotidiano tem a lucidez da denúncia que devia fazer inveja a muitos pseudo intelectuais de esquerda que nunca saem da bajulação do poder e da riqueza e são incapazes, por medo ou por interesse, de gritar essa verdade, enquanto vão trauteando o discurso da falsa liberdade.
O que hoje dana sobre o mundo é a estupidez, a violência e a avidez do homem.
Termina como começou, salientando o papel nefasto do Homem em resultado da sua avidez e da sua ganância.

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