LEITURAS
Pelos fins de Outubro apareceram nas livrarias quatro livros que me seduziram. Sabem que isto dos livros é uma sedução muito especial. È a descoberta, olhá-los, senti-los nas mãos, desfolhá-los e quando chegámos à leitura estamos já apaixonados. No Comité Europeu há um italiano muito especial, pois está sempre apaixonado. Aliás, nós sabemos quando está apaixonado, pois as suas intervenções são muito mais arrebatadas. Eu gosto dele, mesmo quando se despede de mim com dois beijos que é uma coisa que me deixa muito…, irritado, mas enfim, dizia ele da última vez, que quando se apaixona, o mais bonito, o mais doce, é a sedução. O resto vem por acréscimo e de forma natural. É assim a minha relação com os livros. Começa por um olhar, passa para uma sedução e quando desabrocha a paixão, segue-se o mais natural que é a leitura. Pois foi isso que se passou com aqueles quatro livros. Claro que não os comprei porque temos de nos acalmar por todos os motivos. Porque só lemos um de cada vez e porque o bolso só aguenta um de cada vez. Bem, havia um que deveria ter comprado de imediato porque faz parte de um conjunto de leituras seleccionadas que fazem parar tudo. Mas aguentei porque assim me impunha as circunstâncias e fui-me entretendo com a leitura da vida de Vasco de Gama, esse senhor feudal que dizem ter descoberto o caminho marítimo para a Índia, embora tenha ficado irritado quando à chegada a Calecut descobriu que os árabes já por ali andavam há muito. O seu processo de diálogo foi feito com as bombardas das naus. Quando tinha duas ou três feitorias, intitulou-se vice-rei da Índia. É assim mesmo, à português. Mas honra lhes seja feita, naquela época com um milhão de habitantes, portugueses e castelhanos reuniram-se em Tordesilhas e dividiram o mundo entre os dois. Convenhamos, não é para qualquer um. Mas como disse, Vasco da Gama foi só para entreter, pois aí por meados de Novembro adquiri o livro que trazia na memória e esta semana iniciei a leitura. Nunca soube explicar muito bem essa ligação que tenho com Neruda. Talvez porque uma das primeiras leituras que fiz foi os “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada”. Acontece até que uma vez tentei imitá-lo quando há uns anos atrás estava apaixonado por uma mulher muito bonita. Mas da imitação apenas saíram, “Um Poema de Amor e Sete Canções Desesperadas”. Mas os poemas de Neruda não são só dedicados ao grande amor da sua vida, foram-no também ao Chile e à sua América que tanto amou. Creio que é também essa América que me liga ao poeta da Ilha Negra. Essa América dos Andes solitários, dessas montanhas cheias de silêncio e solidão que tanto tem abraçado a minha vida, com um condor soberbo planando sobre as alturas. E ainda o Chile, esse território que das terras roubadas à Bolívia e ao Peru se estende pelo medonho deserto de Atacama cheio de terríveis histórias de homens enterrados nas minas e das noites sem poeiras donde se pode contemplar as estrelas sem interferências, de Santiago e Valparaíso onde vive essa burguesia, altaneira, rica e brutal, acabando nas terras da Araucânia e da Terra do Fogo onde não consigo imaginar como é possível algo sobreviver. Pois terá sido tudo isso que me fez apaixonar pela escrita do poeta. O livro que principiei a ler é a sua vida contada por um outro chileno extraordinário, Volodia Teitelboim. Amigo de décadas, escritor, pertenceu a uma geração de chilenos que soube amar a sua pátria. Preso, exilado, sobreviveu a dramas infindáveis para agora nos vir contar a história do poeta que morreu quinze dias depois da brutalidade dos sátrapas ter descido da cordilheira para semear o Mapocho de cadáveres. Ainda agora iniciei a leitura mas sei que durante três ou quatro meses me vou apaixonar ao longo das 550 páginas do livro.
«[…] Eu penso que a poesia é uma acção contingente ou solene em que entram por semelhante medida a solidão e a acção, a intimidade de cada um consigo mesmo, a intimidade do homem e a secreta revelação da natureza. E penso com não menor fé que tudo é sustentado – o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia – numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, porque assim a poesia os une e os confunde. […]
As nossas estrelas primordiais são a luta e a esperança. Mas não há lutas nem esperanças solitárias. […]
Há que olhar o mapa da América, confrontar-se com a grandiosa diversidade, a generosidade cósmica do espaço que nos rodeia, para entender que muitos escritores se recusem a consentir no prolongamento do passado de opróbrio e de saque que escuros deuses destinaram aos povos americanos. […]
Faz hoje cem anos exactos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: “A l’aurore, armes d’une ardente patience, nous entrerons aux splendides Viles”. “Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos em esplêndidas cidades”.
Eu creio nesta profecia de Rimbaud, o Visionário.»
Discurso de Pablo Neruda em 1971 ao receber o Prémio Nobel da Literatura.
«[…] Eu penso que a poesia é uma acção contingente ou solene em que entram por semelhante medida a solidão e a acção, a intimidade de cada um consigo mesmo, a intimidade do homem e a secreta revelação da natureza. E penso com não menor fé que tudo é sustentado – o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia – numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, porque assim a poesia os une e os confunde. […]
As nossas estrelas primordiais são a luta e a esperança. Mas não há lutas nem esperanças solitárias. […]
Há que olhar o mapa da América, confrontar-se com a grandiosa diversidade, a generosidade cósmica do espaço que nos rodeia, para entender que muitos escritores se recusem a consentir no prolongamento do passado de opróbrio e de saque que escuros deuses destinaram aos povos americanos. […]
Faz hoje cem anos exactos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: “A l’aurore, armes d’une ardente patience, nous entrerons aux splendides Viles”. “Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos em esplêndidas cidades”.
Eu creio nesta profecia de Rimbaud, o Visionário.»
Discurso de Pablo Neruda em 1971 ao receber o Prémio Nobel da Literatura.
Novembro de 2004
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