POESIA AO AMANHECER
Bom dia, meus Amigos
Falei-vos há dias das mulheres que viveram parte da adolescência e da sua vida, clandestinas ao lado de companheiros com os quais só uma parte do que a vida nos pode oferecer, era possível. Mas não vos disse tudo. Não vos disse porque prometi a mim mesmo que certas histórias haveriam de ficar para sempre onde estão. Contudo, a idade vai amolecendo o absoluto e faz transbordar alguns sentimentos, daí que vou contar-vos a parte que faltava. Como sabem vivi nas franjas daquela vivência escondida e quando lia a Revista que vos falei, um rosto chamou-me a atenção. Ao princípio pareceu-me demasiado nova para estar naquelas páginas, mas depois verifiquei que um certo ar jovem escondia mais de 60 anos e foi então que reconheci a Faustina. Em meados de Agosto na véspera de partir para a longínqua e mística Moscovo um desses clandestinos marcou-me um encontro nas ruas de Vila Nova de Gaia. Estava uma tarde calma e agradável sem grande calor. Conversamos enquanto caminhávamos e fui recebendo as instruções necessárias para viajar cinco mil quilómetros com documentos que não eram meus. Era um homem alto, forte, enorme face à minha frágil compleição física. Tinha de olhar para cima para o ver. Era um pouco nervoso, mas não perdia a calma. Enquanto ele estava preocupado com questões práticas ainda lhe coloquei uma pergunta sobre materialismo dialéctico. Aos vinte e um anos, lembramo-nos de cada uma nos momentos solenes… Mas respondeu, conforme soube, naturalmente, pois as suas preocupações não passavam por dúvidas filosóficas. Parti essa noite e ele por cá ficou nessa batalha quotidiana pela democracia e a liberdade. A 20 de Abril de 1974 foi preso. Foi o último preso político do fascismo. Cinco dias depois a revolução desceu ao Terreiro do Paço e ele nem queria acreditar que quem lhe abria a porta da prisão eram marinheiros do Corpo de Fuzileiros. Esperavam-no a Faustina, sua companheira de tantos anos e os filhos que já se preparavam para partir para longe dos pais. Encontrei-o em Julho quando regressei, mas os tempos eram já outros. Era de Colares ali para os lados de Sintra e creio que para lá foi viver, pois já não o encontro há uns bons vinte anos.
CANTIGA PARA PEDIR DOIS TOSTÕES
Nos carris
vão dois comboios parados
foste longe e regressaste
trazes fatos bem cuidados
E já pensas
em dourar o teu portão
se és senhor de dez ou vinte
és criado de um milhão
Regressaste
com um dedo em cada anel
e projectos num papel
e amigos esquecidos
Tempos idos
são tempos que voltarão
em que pedirás ao chão
os banquetes prometidos
Milionário que voltaste
dois tostões prós que abandonaste
Fazes pontes
sobre rios e valados
Mas quando o cimento seca
já morremos afogados
Fazes fontes
no silêncio das aldeias
e a sede é tal que bebemos
até ter água nas veias
Instituíste
guarda-sóis e manda-chuvas
lambe-botas, beija-luvas
pedras-moles e águas-duras
Inauguras
monumentos ao passado
que está morto e enterrado
entre naus e armaduras
Milionário que voltaste
dois tostões prós que atraiçoaste
Quanto a nós cantores da palidez
nosso canto nunca fez
filhos sãos a uma mulher
Nem sequer
passa mel nos nossos ramos
pois a abelha que cantamos
será mosca até morrer
Milionário que voltaste
dois tostões prós que atraiçoaste.
SÉRGIO GODINHO, in “O Nosso Amargo Cancioneiro”
Se o amor da mulher é digno de um respeito que o outro não merece, é porventura unicamente porque contém o futuro. Mas não é quando a vida aparece absurda e desprovida de sentido, que havemos de alegrar-nos em perpetuá-la.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
“A vitória da lista apadrinhada pelo ayatollah Sistani nas eleições legislativas iraquianas fez surgir o medo de uma «ameaça xiita». No entanto, os debates no interior das comunidades xiitas reflectem antes do mais uma grande diversidade religiosa e política.”
AHMAD SALAMATIAN “Os xiitas divididos entre Teerão e Bagdad ”, in “Le Monde diplomatique”, Julho de 2005
Porto, 08 de Agosto de 2005
Falei-vos há dias das mulheres que viveram parte da adolescência e da sua vida, clandestinas ao lado de companheiros com os quais só uma parte do que a vida nos pode oferecer, era possível. Mas não vos disse tudo. Não vos disse porque prometi a mim mesmo que certas histórias haveriam de ficar para sempre onde estão. Contudo, a idade vai amolecendo o absoluto e faz transbordar alguns sentimentos, daí que vou contar-vos a parte que faltava. Como sabem vivi nas franjas daquela vivência escondida e quando lia a Revista que vos falei, um rosto chamou-me a atenção. Ao princípio pareceu-me demasiado nova para estar naquelas páginas, mas depois verifiquei que um certo ar jovem escondia mais de 60 anos e foi então que reconheci a Faustina. Em meados de Agosto na véspera de partir para a longínqua e mística Moscovo um desses clandestinos marcou-me um encontro nas ruas de Vila Nova de Gaia. Estava uma tarde calma e agradável sem grande calor. Conversamos enquanto caminhávamos e fui recebendo as instruções necessárias para viajar cinco mil quilómetros com documentos que não eram meus. Era um homem alto, forte, enorme face à minha frágil compleição física. Tinha de olhar para cima para o ver. Era um pouco nervoso, mas não perdia a calma. Enquanto ele estava preocupado com questões práticas ainda lhe coloquei uma pergunta sobre materialismo dialéctico. Aos vinte e um anos, lembramo-nos de cada uma nos momentos solenes… Mas respondeu, conforme soube, naturalmente, pois as suas preocupações não passavam por dúvidas filosóficas. Parti essa noite e ele por cá ficou nessa batalha quotidiana pela democracia e a liberdade. A 20 de Abril de 1974 foi preso. Foi o último preso político do fascismo. Cinco dias depois a revolução desceu ao Terreiro do Paço e ele nem queria acreditar que quem lhe abria a porta da prisão eram marinheiros do Corpo de Fuzileiros. Esperavam-no a Faustina, sua companheira de tantos anos e os filhos que já se preparavam para partir para longe dos pais. Encontrei-o em Julho quando regressei, mas os tempos eram já outros. Era de Colares ali para os lados de Sintra e creio que para lá foi viver, pois já não o encontro há uns bons vinte anos.
CANTIGA PARA PEDIR DOIS TOSTÕES
Nos carris
vão dois comboios parados
foste longe e regressaste
trazes fatos bem cuidados
E já pensas
em dourar o teu portão
se és senhor de dez ou vinte
és criado de um milhão
Regressaste
com um dedo em cada anel
e projectos num papel
e amigos esquecidos
Tempos idos
são tempos que voltarão
em que pedirás ao chão
os banquetes prometidos
Milionário que voltaste
dois tostões prós que abandonaste
Fazes pontes
sobre rios e valados
Mas quando o cimento seca
já morremos afogados
Fazes fontes
no silêncio das aldeias
e a sede é tal que bebemos
até ter água nas veias
Instituíste
guarda-sóis e manda-chuvas
lambe-botas, beija-luvas
pedras-moles e águas-duras
Inauguras
monumentos ao passado
que está morto e enterrado
entre naus e armaduras
Milionário que voltaste
dois tostões prós que atraiçoaste
Quanto a nós cantores da palidez
nosso canto nunca fez
filhos sãos a uma mulher
Nem sequer
passa mel nos nossos ramos
pois a abelha que cantamos
será mosca até morrer
Milionário que voltaste
dois tostões prós que atraiçoaste.
SÉRGIO GODINHO, in “O Nosso Amargo Cancioneiro”
Se o amor da mulher é digno de um respeito que o outro não merece, é porventura unicamente porque contém o futuro. Mas não é quando a vida aparece absurda e desprovida de sentido, que havemos de alegrar-nos em perpetuá-la.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
“A vitória da lista apadrinhada pelo ayatollah Sistani nas eleições legislativas iraquianas fez surgir o medo de uma «ameaça xiita». No entanto, os debates no interior das comunidades xiitas reflectem antes do mais uma grande diversidade religiosa e política.”
AHMAD SALAMATIAN “Os xiitas divididos entre Teerão e Bagdad ”, in “Le Monde diplomatique”, Julho de 2005
Porto, 08 de Agosto de 2005
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