POESIA AO AMANHECER
Bom dia, meus Amigos
Fui abrandar as saudades a Faro, pois a Marta veio até ao Algarve. Foi quase ir e vir que o tempo não permitia longas ausências. Parti numa manhã límpida e com o ar lavado pela chuva, rumei a sul. Por entre florestas de verde, seguindo os trilhos dos cavaleiros de outrora, saídos do silêncio de aldeias perdidas ou do isolamento de feudos senhoriais, cristãos como convinha, espada na mão direita e cruz na esquerda, espadeirando quem lhes surgia ao caminho, levando a palavra de Deus, ao que diziam, na bainha ensanguentada das armas que brandiam. Por mim, só tenho a força da verdade em que acredito e não pretendo converter ninguém nem conquistar territórios em nome de qualquer fé. Certamente por isso, o Mondego me pareceu belo do alto da esbelta ponte que o sobrevoa quando aquele se aconchega ao mar. Atravessado o delta, sente-se logo nas palavras, o aroma do árabe a aproximar-se e não nos esqueçamos que a história nos falava de um espaço de tolerância neste território de convivências íntimas. Porto de Mós possui um castelo que se ergue soberbo sobre a vila, lembrando poderes passados que não foram pequenos e a montanha, explorada por quem da pedra faz negócio, mostra ao vale que se estende a seus pés, as feridas imensas desse labor. O verde, esvaiu-se, entretanto. É mais raro e mais seco, os lábios pedem água que escasseia e na ribeira de Santarém o grande rio que atravessa a Meseta, dorme exangue nas areias das margens parecendo sem forças para alcançar o oceano. Terra de ocupação muçulmana, o vasto Alentejo é paisagem tantas vezes cantada. Seco na sua imensidão, ponteado de árvores que resistem heróicas ao passar de todas as adversidades, faz-nos adormecer na sua travessia tórrida. O Algarve foi o espaço onde chegamos por fim, oito séculos após o início da reconquista lhe chamaram. Hoje, procuramos redescobrir o que destruímos com boas ou más intenções, ou o que pode ser pior, sem intenções nenhumas. À tarde quando contemplava a beleza da Ria Formosa onde o mar se alarga por entre ilhas e canais de uma quietude ensurdecedora com a noite à procura de descanso, pareceu-me ainda escutar o som do almuedim chamando para a última oração do dia, pareceu-me até, ver os cantos por sobre as ondas em melodias de sossego acariciando a mente dos Homens, mas certamente foi impressão minha.
CANTIGA DO FOGO E DA GUERRA
Há um fogo enorme no jardim da guerra
E os homens semeiam agulhas na terra
Os homens passeiam c’os pés no carvão
que os deuses acendem luzindo um tição
P’ra apagar o fogo vêm embaixadores
trazendo no peito água e extintores
Extinguem as vidas dos que caem na rede
e dão água aos mortos que já não têm sede
Ao circo da guerra chegam piromagos
abrem grande a boca quando são bem pagos
Soltam labaredas pela boca cariada
fogo que não arde nem queima nem nada
Senhores importantes fazem piqueniques
churrascam o frango no ardor dos despiques
Engolem sangria dos sangues fanados
e enxugam os beiços na pele dos queimados
É guerra de trapos, do pulmão que cessa
do óleo cansado que arde depressa
Os homens maciços cavam-se por dentro
e o fogo penetra, vai direito ao centro.
SÉRGIO GODINHO, in “O Nosso Amargo Cancioneiro”
Conformando-me às mais estritas regras morais, concedia-me agora o direito de as julgar, e dir-se-ia que o meu pensamento se atrevia a ser mais livre, desde que renunciara a toda a liberdade na vida.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
“O mundo árabe está a afundar-se numa crise social, económica e política. Regimes autoritários, monárquicos ou republicanos monopolizam o poder, enquanto as populações aspiram à democracia. E não serão as intervenções militares que poderão acelerar a mudança nesta atormentada região.”
GILBERT ACHCAR “Possibilidades e contingências de uma Primavera árabe ”, in “Le Monde diplomatique”, Julho de 2005
Porto, 04 de Agosto de 2005
Fui abrandar as saudades a Faro, pois a Marta veio até ao Algarve. Foi quase ir e vir que o tempo não permitia longas ausências. Parti numa manhã límpida e com o ar lavado pela chuva, rumei a sul. Por entre florestas de verde, seguindo os trilhos dos cavaleiros de outrora, saídos do silêncio de aldeias perdidas ou do isolamento de feudos senhoriais, cristãos como convinha, espada na mão direita e cruz na esquerda, espadeirando quem lhes surgia ao caminho, levando a palavra de Deus, ao que diziam, na bainha ensanguentada das armas que brandiam. Por mim, só tenho a força da verdade em que acredito e não pretendo converter ninguém nem conquistar territórios em nome de qualquer fé. Certamente por isso, o Mondego me pareceu belo do alto da esbelta ponte que o sobrevoa quando aquele se aconchega ao mar. Atravessado o delta, sente-se logo nas palavras, o aroma do árabe a aproximar-se e não nos esqueçamos que a história nos falava de um espaço de tolerância neste território de convivências íntimas. Porto de Mós possui um castelo que se ergue soberbo sobre a vila, lembrando poderes passados que não foram pequenos e a montanha, explorada por quem da pedra faz negócio, mostra ao vale que se estende a seus pés, as feridas imensas desse labor. O verde, esvaiu-se, entretanto. É mais raro e mais seco, os lábios pedem água que escasseia e na ribeira de Santarém o grande rio que atravessa a Meseta, dorme exangue nas areias das margens parecendo sem forças para alcançar o oceano. Terra de ocupação muçulmana, o vasto Alentejo é paisagem tantas vezes cantada. Seco na sua imensidão, ponteado de árvores que resistem heróicas ao passar de todas as adversidades, faz-nos adormecer na sua travessia tórrida. O Algarve foi o espaço onde chegamos por fim, oito séculos após o início da reconquista lhe chamaram. Hoje, procuramos redescobrir o que destruímos com boas ou más intenções, ou o que pode ser pior, sem intenções nenhumas. À tarde quando contemplava a beleza da Ria Formosa onde o mar se alarga por entre ilhas e canais de uma quietude ensurdecedora com a noite à procura de descanso, pareceu-me ainda escutar o som do almuedim chamando para a última oração do dia, pareceu-me até, ver os cantos por sobre as ondas em melodias de sossego acariciando a mente dos Homens, mas certamente foi impressão minha.
CANTIGA DO FOGO E DA GUERRA
Há um fogo enorme no jardim da guerra
E os homens semeiam agulhas na terra
Os homens passeiam c’os pés no carvão
que os deuses acendem luzindo um tição
P’ra apagar o fogo vêm embaixadores
trazendo no peito água e extintores
Extinguem as vidas dos que caem na rede
e dão água aos mortos que já não têm sede
Ao circo da guerra chegam piromagos
abrem grande a boca quando são bem pagos
Soltam labaredas pela boca cariada
fogo que não arde nem queima nem nada
Senhores importantes fazem piqueniques
churrascam o frango no ardor dos despiques
Engolem sangria dos sangues fanados
e enxugam os beiços na pele dos queimados
É guerra de trapos, do pulmão que cessa
do óleo cansado que arde depressa
Os homens maciços cavam-se por dentro
e o fogo penetra, vai direito ao centro.
SÉRGIO GODINHO, in “O Nosso Amargo Cancioneiro”
Conformando-me às mais estritas regras morais, concedia-me agora o direito de as julgar, e dir-se-ia que o meu pensamento se atrevia a ser mais livre, desde que renunciara a toda a liberdade na vida.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
“O mundo árabe está a afundar-se numa crise social, económica e política. Regimes autoritários, monárquicos ou republicanos monopolizam o poder, enquanto as populações aspiram à democracia. E não serão as intervenções militares que poderão acelerar a mudança nesta atormentada região.”
GILBERT ACHCAR “Possibilidades e contingências de uma Primavera árabe ”, in “Le Monde diplomatique”, Julho de 2005
Porto, 04 de Agosto de 2005
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