POESIA AO AMANHECER
Bom dia, Meus Amigos
É verdade que tenho estado “ausente”, por cansaço, por excesso de serviço e por falta de ideias, de imaginação para vos dizer olá com um sorriso. Talvez esteja a viver um daqueles momentos em que sentimos a alma doente. Bem, mas hoje decidi que vos tinha de dizer duas palavras que trago aqui amarradas ao peito. Sabem como gosto desta cidade onde vivo. Bem, não vivo, mas aqui nasci, aqui passo o tempo, aqui deixo o olhar e nunca retirei a alma. Pois, cresci a aprender a amar os seus valores mais intrínsecos, aqueles que mesmo já não sendo totalmente verdadeiros ainda compõem o nosso imaginário, valores que têm a ver com nobreza de sentimentos, liberdade de pensamento e dignidade de comportamentos. O Porto foi sempre uma cidade de homens livres. Com o Bispo contra o Rei e depois com o Rei contra o Bispo. Era uma liberdade burguesa, mas também é a única que tivemos até hoje, mas foi sustentada com a coragem e o sangue da arraia-miúda, dos mesteirais e de todos aqueles que morrem sempre por uma causa. Ao longo da vida tenho sempre pugnado para que os visitantes levem desta cidade uma das suas medalhas mais valoradas que é de saber receber bem, saber dizer bem vindos aos que chegam e regressem sempre que puderem aos que partem. A cidade é vossa e nós encontramo-nos ao vosso dispor. Pois bem, a semana passada vi passarem imagens na TV que desonraram esta cidade. O nome da cidade espalhou-se com a fama de um vinho que não é seu e nos últimos anos com o nome de um Clube que tem coleccionado vitórias e é bom que quando estamos algures no mundo alguém nos felicite por virmos de onde vimos. Só que as imagens que vi de arruaça e violência promovida por energúmenos e homúnculos, provavelmente uma parte deles oriundos de outros locais que não o Porto, não têm palavras que as qualifiquem. A cidade e as suas praças não são de ninguém, foram e serão sempre de todos os homens livres que as pisarem, mesmo que alguns decidam ocupá-las temporariamente à cacetada. E, apesar de tudo, o mais chocante foi encontrar nos dias seguintes alguma gente séria que não apoiando, desculpou os actos com o argumento de que os outros também…., como se a “nossa” violência pudesse ser desculpada com a violência dos outros. Para além de nos sentirmos tristes por os vândalos guerrearem a seu bel-prazer pela cidade ocupada ficou ainda a tristeza de verificarmos que quem não sabe perder, não merece vencer, pelo que, constatamos agora, têm sido uns maus vencedores e não merecem a cidade que têm.
Assim que a conheci fiquei a gostar da palavra Winnipeg. As palavras têm asas ou não as têm. A palavra Winnipeg é alada. Eu vi-a voar pela primeira vez num atracadouro de vapores, perto de Bordéus. Era um formoso barco velho, com essa dignidade que dão os sete mares ao longo do tempo.
Diante dos meus olhos, sob a minha direcção, o navio devia encher-se de dois mil homens e mulheres. Vinham de campos de concentração, de inóspitas regiões, do deserto. Vinham da angústia, da derrota, e este barco devia encher-se com eles para trazê-los às costas do Chile, ao meu próprio mundo que os acolhia. Eram os combatentes espanhóis que cruzaram a fronteira da França para um exílio que já dura há mais de trinta anos.
Eu não pensei, quando viajei do Chile à França, nos azares, dificuldades e adversidades que encontraria em minha missão. O meu país necessitava de capacidades qualificadas, homens de vontade criadora. Necessitávamos de especialistas.
Recolher estes seres dispersados, escolhê-los nos mais remotos acampamentos e levá-los até aquele dia azul, defronte do mar da França, onde suavemente flutuava o barco Winnipeg, foi coisa grave, foi assunto complicado, foi trabalho de devoção e desesperação.
Os meus colaboradores eram uma espécie de tribunal do purgatório. E eu, pela primeira e última vez, devo ter parecido Júpiter aos emigrados. Eu decretava o último Sim ou o último Não. Porém, eu sou mais Sim do que Não, de modo que disse sempre Sim.
Estavam já a bordo quase todos os meus bons sobrinhos, peregrinos rumo a terras desconhecidas, e me preparava para descansar da dura tarefa, mas as minhas emoções pareciam não terminar nunca. O governo do Chile, pressionado e combatido, me instava num telegrama a cancelar a viagem dos emigrados.
Falei com o Ministério das Relações Exteriores do meu país. Era difícil falar a grande distância em 1939. Mas a minha indignação e a minha angústia ouviram-se através de oceanos e cordilheiras e o Ministro ficou solidário comigo. Depois de uma crise de gabinete, o Winnipeg, carregado com dois mil republicanos que cantavam e choravam, levantou âncoras e tomou o rumo de Valparaíso.
Que a crítica apague toda a minha poesia, se lhe parece. Mas este poema, que hoje recordo, ninguém poderá apagá-lo nunca mais.
PABLO NERUDA, “Nasci para nascer”, in “Presentes de um Poeta”
Receava o imprevisto dos encontros mundanos, o perigo dos rostos humanos. Encontrei-me só. Depois a solidão meteu-me medo. Nunca se está completamente só: para nossa desgraça, estamos sempre com nós mesmos.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
Fantasma presente, estátua viva, marca registada, herói para uns, ditador para outros, figura incontornável da defunta Jugoslávia e de todo o século XX, 25 anos depois da morte de Tito, ainda há Tito.
ANDRÉ CUNHA e ANA ZADRO, “A História em restauro”, in “História”, Maio de 2005
Porto, 30 de Maio de 2005
É verdade que tenho estado “ausente”, por cansaço, por excesso de serviço e por falta de ideias, de imaginação para vos dizer olá com um sorriso. Talvez esteja a viver um daqueles momentos em que sentimos a alma doente. Bem, mas hoje decidi que vos tinha de dizer duas palavras que trago aqui amarradas ao peito. Sabem como gosto desta cidade onde vivo. Bem, não vivo, mas aqui nasci, aqui passo o tempo, aqui deixo o olhar e nunca retirei a alma. Pois, cresci a aprender a amar os seus valores mais intrínsecos, aqueles que mesmo já não sendo totalmente verdadeiros ainda compõem o nosso imaginário, valores que têm a ver com nobreza de sentimentos, liberdade de pensamento e dignidade de comportamentos. O Porto foi sempre uma cidade de homens livres. Com o Bispo contra o Rei e depois com o Rei contra o Bispo. Era uma liberdade burguesa, mas também é a única que tivemos até hoje, mas foi sustentada com a coragem e o sangue da arraia-miúda, dos mesteirais e de todos aqueles que morrem sempre por uma causa. Ao longo da vida tenho sempre pugnado para que os visitantes levem desta cidade uma das suas medalhas mais valoradas que é de saber receber bem, saber dizer bem vindos aos que chegam e regressem sempre que puderem aos que partem. A cidade é vossa e nós encontramo-nos ao vosso dispor. Pois bem, a semana passada vi passarem imagens na TV que desonraram esta cidade. O nome da cidade espalhou-se com a fama de um vinho que não é seu e nos últimos anos com o nome de um Clube que tem coleccionado vitórias e é bom que quando estamos algures no mundo alguém nos felicite por virmos de onde vimos. Só que as imagens que vi de arruaça e violência promovida por energúmenos e homúnculos, provavelmente uma parte deles oriundos de outros locais que não o Porto, não têm palavras que as qualifiquem. A cidade e as suas praças não são de ninguém, foram e serão sempre de todos os homens livres que as pisarem, mesmo que alguns decidam ocupá-las temporariamente à cacetada. E, apesar de tudo, o mais chocante foi encontrar nos dias seguintes alguma gente séria que não apoiando, desculpou os actos com o argumento de que os outros também…., como se a “nossa” violência pudesse ser desculpada com a violência dos outros. Para além de nos sentirmos tristes por os vândalos guerrearem a seu bel-prazer pela cidade ocupada ficou ainda a tristeza de verificarmos que quem não sabe perder, não merece vencer, pelo que, constatamos agora, têm sido uns maus vencedores e não merecem a cidade que têm.
Assim que a conheci fiquei a gostar da palavra Winnipeg. As palavras têm asas ou não as têm. A palavra Winnipeg é alada. Eu vi-a voar pela primeira vez num atracadouro de vapores, perto de Bordéus. Era um formoso barco velho, com essa dignidade que dão os sete mares ao longo do tempo.
Diante dos meus olhos, sob a minha direcção, o navio devia encher-se de dois mil homens e mulheres. Vinham de campos de concentração, de inóspitas regiões, do deserto. Vinham da angústia, da derrota, e este barco devia encher-se com eles para trazê-los às costas do Chile, ao meu próprio mundo que os acolhia. Eram os combatentes espanhóis que cruzaram a fronteira da França para um exílio que já dura há mais de trinta anos.
Eu não pensei, quando viajei do Chile à França, nos azares, dificuldades e adversidades que encontraria em minha missão. O meu país necessitava de capacidades qualificadas, homens de vontade criadora. Necessitávamos de especialistas.
Recolher estes seres dispersados, escolhê-los nos mais remotos acampamentos e levá-los até aquele dia azul, defronte do mar da França, onde suavemente flutuava o barco Winnipeg, foi coisa grave, foi assunto complicado, foi trabalho de devoção e desesperação.
Os meus colaboradores eram uma espécie de tribunal do purgatório. E eu, pela primeira e última vez, devo ter parecido Júpiter aos emigrados. Eu decretava o último Sim ou o último Não. Porém, eu sou mais Sim do que Não, de modo que disse sempre Sim.
Estavam já a bordo quase todos os meus bons sobrinhos, peregrinos rumo a terras desconhecidas, e me preparava para descansar da dura tarefa, mas as minhas emoções pareciam não terminar nunca. O governo do Chile, pressionado e combatido, me instava num telegrama a cancelar a viagem dos emigrados.
Falei com o Ministério das Relações Exteriores do meu país. Era difícil falar a grande distância em 1939. Mas a minha indignação e a minha angústia ouviram-se através de oceanos e cordilheiras e o Ministro ficou solidário comigo. Depois de uma crise de gabinete, o Winnipeg, carregado com dois mil republicanos que cantavam e choravam, levantou âncoras e tomou o rumo de Valparaíso.
Que a crítica apague toda a minha poesia, se lhe parece. Mas este poema, que hoje recordo, ninguém poderá apagá-lo nunca mais.
PABLO NERUDA, “Nasci para nascer”, in “Presentes de um Poeta”
Receava o imprevisto dos encontros mundanos, o perigo dos rostos humanos. Encontrei-me só. Depois a solidão meteu-me medo. Nunca se está completamente só: para nossa desgraça, estamos sempre com nós mesmos.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
Fantasma presente, estátua viva, marca registada, herói para uns, ditador para outros, figura incontornável da defunta Jugoslávia e de todo o século XX, 25 anos depois da morte de Tito, ainda há Tito.
ANDRÉ CUNHA e ANA ZADRO, “A História em restauro”, in “História”, Maio de 2005
Porto, 30 de Maio de 2005
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