Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

28 junho, 2009

LEITURAS


TODOS NÓS. HOMENS E MULHERES, AMAMOS OS nossos sonhos – sejam eles absurdos (como quase sempre acontece), fantásticos, meramente plausíveis ou eróticos. Amamo-los porque nos dão a possibilidade de nos evadirmos da realidade quotidiana, porque nos livram da lucidez com que olhamos o mundo, porque suavizam a tensão que desperta e cansa os nossos sentidos.
Por vezes, fazem até com que nos sintamos magnificamente culpados de os viver, de os sonhar. Mas eu, que nunca me senti nem culpado nem liberto, e muito menos evadido dos meus queridos sonhos, amo-os ainda por outros motivos: pela escrita onírica que me proporcionam – essa noite branca que em nós acende a estrela do dia -, pelo humor que me sugerem, mesmo sendo pesadelos e calafrios, e pela luz imaginária que alarga o espaço em volta do meu mundo.
De onde nos vêm os sonhos que pensamos destinados à literatura?
Há quem fale da relação aparente que parece existir entre o onírico e o literário como desejo, movimento de fuga, acto de deserção e inconformismo contra a passagem tão breve da vida. Claro que sim. Mas creio mais na literatura como energia contrária aos excessos do mundo, susceptível de se opor ao peso que a sua massa vital impõe à consciência e ao espírito dos homens. Se me pedissem uma definição de literatura, diria que era um jogo, um brinquedo da infância que se encontrou por acaso num sótão ou num canto obscuro da casa e que, tal como outrora, não serve senão para imitar o sério, o sagrado, o proibido, os costumes humanos, o absoluto sagrado dos deuses. Ou seja, não serve para nada. Do ponto de vista dessa sua não finalidade, a literatura será portanto uma falta de respeito e uma desobediência civil a toda e qualquer utopia. A linguagem e a criação tornam tão dispensável a ideologia literária, como aqueles que sonham devem dispensar os sentimentos de culpa, o remorso e a necessidade de perdão dos sonhos que tiveram e que não têm de ser levados na conta dos pecados de ninguém.
Não me lembro de ter sonhado este conto. Na verdade, livro-me da memória do vivido depois de o passar a escrito, e pior ainda ao publicá-lo porque sai de dentro da minha sombra e deixa de andar comigo. Talvez que a literatura seja também algo como um sonho de outros sonhos, espelho de espelhos, fusão ou mistura de planos, passagem do sólido ao líquido, e deste ao volátil, que é o estado por excelência da imaginação. Mas não juro acreditar todos os dias nisto que acabo de escrever!
Os chamados contos eróticos (de que este será um exemplo modesto e pouco engenhoso) trazem já atrás de si suficiente maldição para que seja eu a tentar redimi-la com conceitos literários. Pelo contrário, pecador me confesso desta escrita deliciosamente leve, despretensiosa, apenas bem-humorada; mas capaz de pisar todos os riscos da própria existência, da qual fogem os santos como o diabo da cruz. Ela vem merecendo, e bem, a atitude atribulada dos puros, a adesão clandestina dos que a lêem às escondidas como se nela vissem mera pornografia, acabando a beijar a mão perversa, o despudor de quem a escreve.
O escritor não é nem tem de ser um homem de vícios privados e de públicas virtudes. Escreve na medida certa dos riscos que julga dever assumir. Criador de linguagem que é, não distingue entre temas e tabus que não lhe pertencem, não prega a sua moral a ninguém, não tem outro poder que não o da palavra na cabeça, no coração, nos cinco dedos ou na palma da mão.
Sirvo-me da prosa para suscitar, não digo imagens, mas alguns modos de ver o que adiante se conta, pautado apenas pela minha gramática pessoal. Não estou só neste livro. Abrigo-me sob o grande chapéu de chuva do artista Francisco Simões, que desenha para além das palavras e da singeleza do texto e que nos surpreende com a força, a beleza e o movimento das suas imagens igualmente inventadas. Juntos fizemos isto: um mapa de mistérios e miragens ardentes, uma visão elástica e esférica do corpo e da alma – e este objecto disfarçado de livro que ambos ficamos a dever ao humor e à sensibilidade de quem o edita.

João de Melo
(Madrid, 01.02.2009)

JOÃO DE MELO nasceu na ilha de São Miguel (Açores) em 1949, onde completou a instrução primária, prosseguindo os seus estudos no continente. Em 1967 passou a residir e a trabalhar em Lisboa. Depois da guerra colonial em Angola entre 1971 e 1974 (tema de duas das suas obras mais significativas, a antologia Os Anos da Guerra e o romance Autópsia de Um Mar de Ruínas), trabalhou na vida sindical, foi editor de autores portugueses, crítico literário e frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, pela qual veio a licenciar-se, em 1981, com o curso de Filologia Românica. Professor dos ensinos secundário e superior durante vários anos, foi convidado em 2001 pelo governo português para o cargo de conselheiro cultural em Espanha, vivendo e trabalhando desde então em Madrid.
Autor de mais de vinte obras, entre as quais ficção, ensaios, antologias, poesia, livros de crónica e de viagem, alguns dos seus livros estão traduzidos em vários países: Espanha, Itália, França, Holanda, Roménia, Bulgária, Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Sérvia e México.
Foram-lhe atribuídos os seguintes prémios literários: Grande Prémio de Novela da Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Eça de Queirós/Cidade de Lisboa, Prémio Cristóvão Colombo (Cidades Capitais Ibero-Americanas), Prémio Fernando Namora/Casino do Estoril, Prémio Antena 1, Prémio Associação Cultural «A Balada» e Prémio Diniz da Luz.
Gente Feliz com Lágrimas, o seu romance mais conhecido e reeditado, foi adaptado ao teatro pelo grupo O Bando, e a telefilme e a televisão pelo realizador José Medeiros.


Que dizer desta delícia de ler este conto, esta história de um homem que vai amando duas mulheres, cada uma de forma diferente, mas com a mesma intensidade, com o mesmo carinho e com a mesma beleza e que um dia, surpreendido, é intensamente amado por uma delas, mas não pela outra que julga feliz, até ao dia que descobre que atrás do silêncio dos seus gestos, se esconde um grande amor mas, pela outra mulher que ele também ama? Resta ler, saborear as palavras doces que nos vão mostrando uma vivência breve destes três personagens e carregada dessa beleza que envolve os amores bonitos. Não gostei das gravuras de Francisco Simões, pelo facto de desvirtuarem a excelência do texto, pois indiciam um erotismo extremo que não ressalta do conto. Podemos supô-lo, pela força das relações dos personagens, mas não nos aparece visível como os desenhos querem dar a entender.

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