Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

18 dezembro, 2006

CONTOS


Estava fria a noite e com a mão direita erguia a gola do blusão protegendo a garganta enquanto caminhava pela rua quase deserta e coberta de água que caía em torrentes de chuva. Não que a hora fosse tardia, mas o clima, o estado do tempo agreste impunha um recolhimento, em casa ou em qualquer lado. A rua mais do que nunca era apenas um trajecto, tal como era agora para si, apressado que estava em chegar, imaginando antecipadamente esse conforto de se recolher entre a roupa quente, aconchegado com a escuridão do quarto. Contudo, tardava esse instante, o usufruto dessa sensação de prazer que o deixava bem consigo mesmo e com as coisas da vida. Apressou o passo, tentou entreter o pensamento com coisas agradáveis, planos para o dia seguinte, lembrar-se das pessoas que gostava, mas parecia que o caminho se prolongava demasiado. Finalmente chegou e quase moderou os gestos só para saborear aquele deleite do aquecimento que lhe proporcionava o interior da casa. Foi arrumando o que trazia e preparando o que necessitava para o dia seguinte, pois sabia de antemão que de manhã todo o tempo seria pouco e não gostava de se atrasar. Com movimentos de antecipado gozo, abriu a cama, despiu-se e, com lentidão foi escorregando até ficar deitado. Cobriu-se deixando apenas os olhos abertos para além do lençol. Apagada a luz, surpreendeu-se por não chegar o sono com a rapidez que imaginou. Pensava que a hora tardia e a fadiga, seriam suficientes para lhe embrulhar os olhos nessa vontade de dormir tão necessária. Mas não, e desde logo percebeu que não ia ser fácil chegar esse momento de repouso. Ainda pensou sentar-se e continuar a leitura daquele livro que tanto entusiasmo lhe estava a proporcionar, mas a quentura da roupa que o amparava, desanimou essa vontade. Respirou e procurou no pensamento uma ideia para o entreter nesses longos minutos que iam decorrer até que a vontade de dormir dispersasse aquela distracção que impedia o cerramento dos olhos para o descanso que tanto carecia. As imagens iam passando por esse ecrã da memória quando parou e fez regredir a última representação. Foi então que lhe encontrou o olhar. Tinha uns olhos bonitos quando vistos de perto, castanhos quase escuros um pouco escondidos naquele rosto miúdo e gaiato e nos lábios ligeiramente dobrados reinava sempre um sorriso. A pele era lisa e pedia carícias de mel desde a fronte até aos maxilares. Lembrava-se dela com nitidez. Conhecera-a ainda menina adulta e os anos foram passando apenas com aquela sensação de ver uma pessoa a crescer e só na última primavera tinha dado conta que era agora uma mulher naquela idade plena de tudo e com capacidade para nos poder deixar felizes em toda a extensão. O sorriso perde a inocência, o olhar começa a falar e os gestos perturbam. Aproximou-se com cautela e sentiu que o peso da idade já lhe inibia a intenção sedutora e ao amor platónico de outros tempos, juntava-se agora a inibição das palavras, pelo que foi um aproximar lento, uma envolvência longínqua e circular e sentia muitas vezes que caminhava mais sem destino do que com um rumo determinado. Nas noites como esta, era ela que se aproximava e parecia fazer tardar ainda mais a vontade de dormir. Era o rosto, o mais perturbador. Aparecia como uma luz, como um brilho intenso que parecia acordar a noite e derretia-se ali em frente a ele como um chamamento, um apelo, quase um convite. E hoje, sim hoje, parece ter vindo com vontade de ficar. Aproximou-se e sentiu que se tirasse a mão de junto do corpo e a estendesse para além da roupa da cama, tocava-lhe certamente na face, nessa pele que tanto tinha desejado roçagar. Apesar dessa proximidade, viu-a chegar-se ainda mais, sentiu que os olhos lhe transmitiam já um calor imenso, começou a ficar afogueado, a jovem ergueu a roupa que o cobria e assim mesmo vestida, serenamente, deitou-se também encostada a ele, enroscando-se nas formas encurvadas daquele corpo que quase já não sonhava. Ainda virou o rosto, tocou-lhe na cabeça e beijou-o na fronte. De seguida adormeceu. Atónito, sem acreditar na verdade que o rodeava, cercou-a com os braços, fechou os olhos e sentiu que escorregava para longe. Acordou, repentinamente, sobressaltado e alagado em suor. Tinha adormecido sem dar conta e aquele sonho fê-lo despertar perturbado. Caramba, parecia quase verdade. Como é possível que a fantasia possa tornar quase realidade os nossos desejos? Acendeu a luz, sentou-se na cama, pegou no livro e reiniciou a leitura do dia anterior. Sempre seria melhor aguardar o sono, atravessando as ruas de Florença.

Free Web Counter
Site Counter