POESIA AO AMANHECER
Bom dia, meus Amigos
Há dias lia eu a parte da necrologia de um jornal partidário quando deparo com o falecimento de um António Freitas de 81 anos de Viana do Castelo. Este Freitas, conheci-o em 1972. Era aquilo que nós hoje definiríamos como um homem calmo, simples e que passava despercebido, numa cidade de província. Trabalhava no que vulgarmente chamamos, uma loja de fazenda e à noite dava aulas ensinando a escrever à máquina. Habitava num 2º andar em frente ao rio, no 1º funcionava a escola e no rés-do-chão, uma confeitaria onde tínhamos encontros discretos. Tinha três filhos. Duas raparigas. A mais velha tinha já ares de mulher e queria aparentar mais sabedoria do que tinha. A do meio era discreta como o pai. Ruiva, sorria com um ar maroto, com aquela marotice que nas mulheres significa um misto de rebeldia e irreverência. O rapaz era ainda muito novo e, portanto, não entra na história. O Freitas era um democrata o que naquela época significava ser da oposição, mas não se notava. Desde o primeiro momento que as nossas ondas caminharam paralelas e quando tinha de ir a Viana, ficava em casa dele. No Verão desse ano, o fascismo começava a entrar numa agonia que se acelerava e esse tal Partido onde exercia a minha actividade política decidiu criar uma organização na zona industrial, cuja responsabilidade recaiu sobre mim e um outro companheiro. Só que no Outono uma distribuição de propaganda levou alguns jovens à prisão, entre os quais esse meu companheiro, hoje meu colega de trabalho. Fala um, fala outro, as prisões foram-se sucedendo. Fui aguardando a minha vez, enquanto ficava politicamente seco, quer dizer, sem actividade. Até que na manhã de 30 de Dezembro aquelas figuras pardas que sustentavam o regime entraram pela casa dentro. Foi só o tempo de abrir a clarabóia, deitar papéis para o telhado e aguardar. Afinal, sabiam menos do que se pensava e deixaram apenas uma notificação para me apresentar no dia 2 de Janeiro. Claro que não me apresentei. Avaliadas as circunstâncias, decidiu-se que seguia para Viana para casa do Freitas. Assim me pus a caminho, parando em Famalicão para mudar de fisionomia. Chegado às margens do Lima, expus a situação àquele homem que tantas vezes me tinha recebido e para espanto meu, não foi nada receptivo a essa ideia. Saiu e no regresso, disse que poderia ficar até Domingo, mas na 2ª feira tinha de procurar outro poiso. Assim fiz. A Elisabete, uma miúda de Ponte de Lima cuja beleza nos deixava tontos prometeu trazer-me de volta ao Porto, só que à hora marcada não apareceu. Uma hora passada quando estava prestes a ficar congelado na berma da EN13, meti-me ao caminho. Alcançou-me 5 quilómetros à frente e acabei por lhe perdoar, pois se não tivesse aparecido seria pior. Após o 25 de Abril, cheguei a encontrar-me com o Freitas, mas a euforia da revolução não deixou tempo para esclarecer a razão de não me ter deixado permanecer uns tempos em sua casa. Na altura, argumentou com os filhos, quer dizer com as filhas, mas não entendi. Só que ao ler o resto da notícia da sua morte, apareceu um pequeno pormenor que se revelou grande em toda esta história. Dizia a notícia que este Freitas era um grande amigo do Partido e a sua casa serviu muitas vezes de ponto de apoio para os elementos clandestinos. Tinha sido este o segredo. Estes homens e as suas casas não podiam ter de forma alguma qualquer comportamento que chamasse as atenções da polícia. Ora, se eu ali ficasse era como mel a atrair as abelhas. Daí a sua discrição. Já não vou a tempo de pedir desculpa ao António Freitas e naturalmente que vós, meus amigos, não têm culpa que eu transforme este espaço que se quer de poesia ao romper da alva numa história destas, mas pelo menos atestam como testemunhas que corrigi o erro de ter pensado de forma defeituosa. Não cheguei a pensar mal, mas também não pensei bem e agora, esta notícia vem colocar tudo no seu devido lugar…
Há dias lia eu a parte da necrologia de um jornal partidário quando deparo com o falecimento de um António Freitas de 81 anos de Viana do Castelo. Este Freitas, conheci-o em 1972. Era aquilo que nós hoje definiríamos como um homem calmo, simples e que passava despercebido, numa cidade de província. Trabalhava no que vulgarmente chamamos, uma loja de fazenda e à noite dava aulas ensinando a escrever à máquina. Habitava num 2º andar em frente ao rio, no 1º funcionava a escola e no rés-do-chão, uma confeitaria onde tínhamos encontros discretos. Tinha três filhos. Duas raparigas. A mais velha tinha já ares de mulher e queria aparentar mais sabedoria do que tinha. A do meio era discreta como o pai. Ruiva, sorria com um ar maroto, com aquela marotice que nas mulheres significa um misto de rebeldia e irreverência. O rapaz era ainda muito novo e, portanto, não entra na história. O Freitas era um democrata o que naquela época significava ser da oposição, mas não se notava. Desde o primeiro momento que as nossas ondas caminharam paralelas e quando tinha de ir a Viana, ficava em casa dele. No Verão desse ano, o fascismo começava a entrar numa agonia que se acelerava e esse tal Partido onde exercia a minha actividade política decidiu criar uma organização na zona industrial, cuja responsabilidade recaiu sobre mim e um outro companheiro. Só que no Outono uma distribuição de propaganda levou alguns jovens à prisão, entre os quais esse meu companheiro, hoje meu colega de trabalho. Fala um, fala outro, as prisões foram-se sucedendo. Fui aguardando a minha vez, enquanto ficava politicamente seco, quer dizer, sem actividade. Até que na manhã de 30 de Dezembro aquelas figuras pardas que sustentavam o regime entraram pela casa dentro. Foi só o tempo de abrir a clarabóia, deitar papéis para o telhado e aguardar. Afinal, sabiam menos do que se pensava e deixaram apenas uma notificação para me apresentar no dia 2 de Janeiro. Claro que não me apresentei. Avaliadas as circunstâncias, decidiu-se que seguia para Viana para casa do Freitas. Assim me pus a caminho, parando em Famalicão para mudar de fisionomia. Chegado às margens do Lima, expus a situação àquele homem que tantas vezes me tinha recebido e para espanto meu, não foi nada receptivo a essa ideia. Saiu e no regresso, disse que poderia ficar até Domingo, mas na 2ª feira tinha de procurar outro poiso. Assim fiz. A Elisabete, uma miúda de Ponte de Lima cuja beleza nos deixava tontos prometeu trazer-me de volta ao Porto, só que à hora marcada não apareceu. Uma hora passada quando estava prestes a ficar congelado na berma da EN13, meti-me ao caminho. Alcançou-me 5 quilómetros à frente e acabei por lhe perdoar, pois se não tivesse aparecido seria pior. Após o 25 de Abril, cheguei a encontrar-me com o Freitas, mas a euforia da revolução não deixou tempo para esclarecer a razão de não me ter deixado permanecer uns tempos em sua casa. Na altura, argumentou com os filhos, quer dizer com as filhas, mas não entendi. Só que ao ler o resto da notícia da sua morte, apareceu um pequeno pormenor que se revelou grande em toda esta história. Dizia a notícia que este Freitas era um grande amigo do Partido e a sua casa serviu muitas vezes de ponto de apoio para os elementos clandestinos. Tinha sido este o segredo. Estes homens e as suas casas não podiam ter de forma alguma qualquer comportamento que chamasse as atenções da polícia. Ora, se eu ali ficasse era como mel a atrair as abelhas. Daí a sua discrição. Já não vou a tempo de pedir desculpa ao António Freitas e naturalmente que vós, meus amigos, não têm culpa que eu transforme este espaço que se quer de poesia ao romper da alva numa história destas, mas pelo menos atestam como testemunhas que corrigi o erro de ter pensado de forma defeituosa. Não cheguei a pensar mal, mas também não pensei bem e agora, esta notícia vem colocar tudo no seu devido lugar…
SÚPLICA
Não digas, musa,
Por quantos versos reparti o pranto
Que chorei neste mundo.
Não contes
Os mil segredos que te confiei
Nas horas de abandono.
Não reveles à vida
O amor que lhe tive
E de que fostes única confidente.
Perdição consciente,
Que mais ninguém me veja
Nesta triste nudez de sonhador.
Que o teu silêncio seja
O meu pudor.
MIGUEL TORGA
Não digas, musa,
Por quantos versos reparti o pranto
Que chorei neste mundo.
Não contes
Os mil segredos que te confiei
Nas horas de abandono.
Não reveles à vida
O amor que lhe tive
E de que fostes única confidente.
Perdição consciente,
Que mais ninguém me veja
Nesta triste nudez de sonhador.
Que o teu silêncio seja
O meu pudor.
MIGUEL TORGA
A virtude, como todas as coisas, tem as suas tentações, bem mais perigosas porque não desconfiamos delas. Antes de vos conhecer, sonhava com o casamento. Aqueles que têm uma existência irrepreensível sonham talvez com outra coisa; compensamo-nos assim de apenas termos uma natureza e de vivermos apenas uma das faces da felicidade.
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”
Porto, 13 de Julho de 2005
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