Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

23 agosto, 2010

LEITURAS


Jesusalém é seguramente a mais madura e mais conseguida obra de um escritor no auge das suas capacidades criativas. Aliando uma narrativa a um tempo complexa e aliciante ao seu estilo poético tão pessoal. Mia Couto confirma o lugar cimeiro de que goza nas literaturas de língua portuguesa. A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado, diz um dos protagonistas deste romance. A prosa mágica do escritor moçambicano ajuda, certamente, a reencantar este nosso mundo.

MIA COUTO nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi jornalista. É professor, biólogo, escritor. Está traduzido em diversas línguas. Entre outros prémios e distinções (de que se destaca a nomeação, por um júri criado para o efeito pela Feira Internacional do Livro do Zimbabwe, de Terra Sonâmbula como um dos doze melhores livros africanos do século XX), foi galardoado, pelo conjunto da sua já vasta obra, com o Prémio Vergílio Ferreira 1999 e com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas 2007. Ainda em 2007 foi distinguido com o Prémio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura pelo seu romance O Outro Pé da Sereia.

Mia Couto encanta-nos sempre, na leitura dos seus livros, sentimos essa música que sopra de África, mesmo que não tenha sons. Sentimos ora a savana com as suas eternidades e infinitos, ou as suas florestas, plenas de feitiços mágicos. Embala-nos como se estivéssemos pousados no ramo de uma árvore sem folhas, deixando-nos baloiçar nesse vento sem pressa que vai passando, como se não existisse, nem dia, nem noite. Neste romance, levou-nos ainda mais longe, colocou-nos nesse instante de reflexão em que olhamos para nós e para o que nos rodeia e, conduz-nos a corrigir a rota ou reforçá-la se já a corrigimos antes, mas sobretudo, a deleitar-nos com a verdade que encontramos nas suas palavras. Fala-nos o velho numa das suas primeiras noites do “silêncio mais bonito que" escutou e lembramo-nos que há de facto silêncios muito belos, sobretudo se no interior deles se encontrar alguém que procuramos ou aguardamos. Para pouco depois se enraivecer nas palavras, “Durante muitos anos alimentei feras pensando que eram animais de estimação”. Quantas vezes a vida nos revela esta surpresa ou quanto surpreendentes conseguem aparecer-nos os seres humanos, escondendo ou guardando dentro de si o melhor e pior e, no entanto, não podemos deixar de amar e perseguir a vida, pela beleza que, pelo menos nalguns instantes carrega. Ou ainda a surpresa do jovem quando o isolamento o privou do olhar e do sentir feminino e se assombrou perante a primeira imagem real. “Aquela era a primeira mulher e ela fazia o chão evaporar. Passaram-se anos, tive amores e paixões por mulheres e, sempre que as amei, o mundo voltou a fugir-me dos pés. Aquele primeiro encontro marcou em mim, fundo, o misterioso poder das mulheres.” Sempre que as amei, diz-nos nesse suposto que podemos não as amar, mas então o que é, não o amor, mas amar? E porque provocam as mulheres nos homens essa sensação de que o mundo lhes fuja dos pés com o seu misterioso poder?, acrescenta, sem interrogação. Sentimos essa capacidade que viaja nas mulheres de nos imobilizarem os sentidos e incendiarem as veias. Não aquelas que nos fazem explodir o desejo ou as outras cuja beleza corporal nos derrete o olhar, mas as outras, essas mais raras para cada um de nós, as que amamos e se tornam inesquecíveis mesmo quando partem. Deixam um silêncio profundo e imenso que só é belo pela recordação que deixam na memória. Zacaria acrescenta um pouco de tristeza a esta verdade quando revela que “Nunca nenhuma mulher me escreveu”. Que maior solidão pode acontecer na vida de um homem quando nenhuma mulher lhe escreve? Não, não existe mais profunda solidão que essa ausência. Nas palavras de uma mulher, viajam todos aqueles sentimentos que nos alimentam o viver da alma. Sem as suas palavras, a ternura e o afecto esvaem-se como se um rio terminasse em pleno deserto. E pelas palavras, podemos esconder-nos, podemos enganar-nos, mas podemos ser ao mesmo tempo verdadeiros, com essa verdade que guardamos no silêncio, na retaguarda do pensamento condicionados pelo mundo que nos censura, como o fizeram Zacaria e a sua madrinha. Que importou ser mentira algo que disseram de si próprios se o que disseram dos seus sentimentos era uma verdade? Como escreveu mais tarde a portuguesa a Zacaria, não sabia se Marcelo foi o amor da sua vida, mas foi uma vida inteira de amor e recomendava-lhe que nunca fizesse nada para sempre, a não ser amar. De facto, essa é a grande distância da paixão. Quando na verdade aprendemos esse estádio de amar, é como se algo ficasse gravado na memória. E acrescenta que “Reencontramos os nossos amores num próximo luar. Mesmo sem lagoa, mesmo sem noite, mesmo sem Lua. Dentro da luz, eternos, eles regressam, roupa flutuando na corrente de um rio”. Que mais dizer?

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