Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

30 agosto, 2010

LEITURAS


Podia tratar-se de uma estrela viva ou podia tratar-se de uma estrela morta. Por vezes, consoante a forma como víssemos, disse ele, essa questão tinha pouca importância, pois as estrelas que vemos de noite vivem no reino da aparência, são aparência, da mesma maneira que os sonhos são aparência. De tal maneira que o viajante da estrada 80 a quem um pneu acabou de rebentar não sabe se o que contempla na imensa noite são estrelas ou se, pelo contrário, são sonhos. De alguma forma, disse ele, esse viajante parado também é parte de um sonho, um sonho que se desprende de outro sonho assim como uma gota de água se desprende de uma gota de água maior a que chamamos onda. Uma vez chegado a este ponto, Seaman advertiu que uma coisa é uma estrela e outra coisa um meteorito. Um meteorito nada tem a ver com uma estrela, disse ele. Um meteorito, sobretudo se a sua trajectória o levar a colidir directamente com a Terra, não tem nada a ver com uma estrela nem com um sonho, mas sim, talvez, com a ideia de desprendimento, uma espécie de desprendimento ao contrário. Depois falou das estrelas-do-mar.

Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico onde a palavra destino foi usada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome de Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões. Madrid, em oito. A palavra amor foi pronunciada duas vezes, uma por cada um. A palavra horror foi pronunciada em seis ocasiões e a palavra felicidade numa (empregou-a Espinoza). A palavra resolução foi dita em doze ocasiões. A palavra solipsismo, em sete. A palavra eufemismo em dez. a palavra categoria, no singular e no plural, em nove. A palavra estruturalismo, numa (Pelletier). O termo literatura norte-americana, em três. As palavras jantar e jantamos, pequeno-almoço e sandes, em dezanove. As palavras olhos, mãos e cabeleireira, em catorze. Depois a conversa tornou-se mais fluida.

O que liga quatro germanistas europeus (unidos pela paixão física e intelectual em torno da obra de Benno von Archimboldi) ao repórter afro-americano Oscar Fate, que viaja até ao México para fazer a cobertura de um combate de boxe? O que liga este último a Amalfitano, um professor de Filosofia, melancólico e meio louco, que se instala com a filha, na cidade fronteiriça de Santa Teresa? O que liga o forasteiro chileno à série de homicídios de contornos macabros que vitimam centenas de mulheres no deserto de Sonora? E o que liga Benno von Archimboldi, o secreto e misterioso escritor alemão do pós-guerra, a essas mulheres barbaramente violadas e assassinadas?
2666. para se ler sem rede – como num sonho em que percorremos um caminho que nos poderá levar a todos os lugares possíveis.

Roberto Bolaño nasceu em 1953, em Santiago do Chile. Aos quinze anos a família mudou-se para a Cidade do México. Abandonou os estudos para regressar ao Chile poucos dias antes do golpe que depôs Salvador Allende. Ligado a um grupo trotsquista, foi preso pelos militares e libertado algum tempo depois. De volta ao México, fundou com amigos o Infra-Realismo, contra o establishment das letras latino-americanas e suas figuras de proa, de Octavio Paz a Garcia Márquez. Nos anos setenta, Bolaño vagabundeou pela Europa, após o que se instalou em Espanha, na Costa Brava, com a mulher e os dois filhos. Morreu em Barcelona, em Julho de 2003, aos cinquenta anos. Entre outros prémios, como o Rómulo Gallegos ou o Herralde, Roberto Bolaño já não pôde receber o prestigiado National Book Critics Circle Award, o da Fundación Lara, o Salambó, o Ciudad de Barcelona, o Santiago de Chile ou o Altazor, atribuídos a 2666, unanimente considerado o maior fenómeno literário da última década.

Ao iniciarmos a leitura deste livro podemos imaginar-nos esgotados, cansados, porventura, fartos e, no entanto, nada disso acontece. A viagem por estes cinco romances ou histórias com os seus personagens diversificados, encontra-nos sempre no desejo de prosseguir e cada um deles deixa-nos essa sensação de lamento por chegar ao fim e, desejosos que o final permita a reunião de todas as histórias ou o encontro de todos os personagens, o que não chega a acontecer, pois a morte do autor não o deixar concluir a obra que provavelmente idealizou. Desde os críticos com a sua vivência pelo leito da literatura e da crítica, com uma paixão atravessando as suas vidas e uma mulher que ama ou os experimenta a todos, para terminar amando o único cujas palavras e gestos nunca deixaram transparecer desejo. Os Amalfitanos perdidos nessa cidade mexicana nas margens do deserto e nos rios da miséria e da pobreza e a jovem Rosa, deambulando pela fronteira invisível do mistério e da morte. A realidade, ou as realidades contadas como se falássemos de outra coisa, talvez em género de conto, talvez como se fizéssemos um relato de algo que pode até nem ser verdade. Tudo isto surge neste romance de título enigmático que nos prende a atenção para a sua leitura ao longo das suas mil páginas. Roberto Bolaño no seu melhor.

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