Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

04 maio, 2009

LEITURAS


“Na pequena cidade bósnia de Travnik, um dos bastiões do império Otomano nos começos do século XIX, coabitam muçulmanos, cristãos e judeus. No ar sente-se uma tensão quase palpável não apenas devido aos conflitos religiosos mas sobretudo pela ameaça de guerra.
Napoleão está no poder em França e decide criar um consulado em Travnik. Jean Daville é o novo cônsul francês e personagem central deste romance extraordinário apontado pela crítica como a verdadeira obra-prima de Ivo Andric. Mal recebido pelos habitantes de Travnik, Daville é considerado um homem fechado, impenetrável e «mau», e a sua convivência com o império Otomano é um constante choque de culturas e ideias. Passados alguns anos chega também à cidade um cônsul austríaco.
Andric narra-nos com mestria o relacionamento entre ambos, as intrigas, as guerras, os amores e ódios. Os dois cônsules lutam nos bastidores pela realização das suas ambições pessoais perante os olhares desconfiados dos habitantes locais habituados às sucessivas ocupações e domínios sofridos ao longo de séculos.
«A crónica de Travnik» é um romance sobre os fanatismos políticos e religiosos e as mesquinhas rivalidades entre os povos. Uma obra profunda que traça a efemeridade dos impérios e ambições humanas.”

“Ivo Andric, prémio Nobel de Literatura, nasceu em Travnik, na Bósnia em 1892. Desde jovem mostrou grande interesse na política da sua época. Torna-se membro do movimento nacionalista progressista Bósnia Jovem, e chega a ser preso por suspeita de conspiração para o assassinato do Arquiduque Francisco Fernando, que viria a despoletar a Primeira Grande Guerra. É na prisão, «humilhado como um verme», que escreve os seus primeiros textos. Em 1920 inicia uma brilhante carreira diplomática que o leva a cidades como Madrid, Viena, Berlim, Bucareste, Paris e Genebra ao mesmo tempo que vai publicando contos, poemas e relatos de viagem (como «Portugal, terra verde»). Em 1944 publica o seu primeiro romance «A ponte sobre o Drina» (Cavalo de Ferro, 2007). Os bombardeamentos a Belgrado surpreendem-no em Berlim como ministro dos Negócios estrangeiros na Alemanha do III Reich. Recusa o asilo que os nazis lhe oferecem e regressa a uma Jugoslávia ocupada. Afasta-se do serviço diplomático e, em 1955, publica «O pátio maldito» (Cavalo de Ferro, 2004). Continua a escrever contos e romances a um ritmo cada vez menor devido a problemas de saúde. É galardoado com o prémio Nobel de Literatura em 1961. Morre em 1975, na Jugoslávia de Tito, com quem sempre manteve relações próximas.”

Há cerca de um ano um acaso fez-me parar com A Ponte sobre o Drina nas mãos. Foi a descoberta da escrita extraordinária de Ivo Andric que me conduziu até esta A Crónica de Travnik, após a passagem pelo O Pátio Maldito.
Tal como a primeira das obras aqui mencionada, é-nos oferecida uma escrita rica, desenvolta que se lê de forma pausada e absorvente. Sentimos não haver pressa em chegar adiante sem assimilarmos o instante que nos está a ser descrito e mesmo quando o interesse aumenta e passamos a uma leitura contínua, continuamos a usufruir dessa sensação que não é possível ultrapassar os acontecimentos.
As cidades da Bósnia são hoje conhecidas pelos dramáticos acontecimentos da década de 90 do século passado, decorridos já quase 15 anos. Travnik não constava dos boletins militares a não ser ocasionalmente, mas há duzentos anos desempenhava um papel deveras importante na estratégia do império otomano. Encravada entre montanhas, crescia estendo-se ao longo da estrada. Ainda hoje, quando a procuramos, encontramos os seus ribeiros, as suas ruas, as suas vielas estreitas, os seus jardins, as suas mesquitas. Ah, as suas mesquitas e talvez mais nada, pois essa convivência entre muçulmanos, sérvios e judeus esboroou-se com a guerra e a democracia não foi capaz de repô-la. O que sobreviveu à centenária ocupação otomana, depois à austro-húngara e à dignidade que lhe concedeu a Jugoslávia, não resistiu à intolerância religiosa actual. Mas isso já não soube Andric e a história que nos conta relata com doçura e serenidade essa relação convivencial entre bósnios, turcos, sérvios ortodoxos, cristãos e judeus. É verdade que os vizires cortavam cabeças com facilidade, mas hoje que já não as cortam, ou ainda cortam?, essa convivência revela-se impossível. O motivo deste romance é abertura de um consulado francês em Travnik num período em que Napoleão reinava pela Europa e vai terminar anos depois com a derrota do imperador, o seu derrube e exílio. A Europa voltava ao reino dos velhos senhores e o consulado francês encerrava agora que a França voltava para as suas fronteiras. O relato da vivência do cônsul francês e a sua relação com o cônsul austríaco também ali presente, permite a Andric desenvolver essa escrita maravilhosa que nos habituou através da qual, estuda os homens, persegue os seus desígnios, aviva as suas intenções e faz transbordar os seus desejos e sonhos. Num conjunto de episódios e acontecimentos sequenciais, dá-nos uma imagem de Travnik, dos seus habitantes na diversidade dos ritos religiosos professados, dos seus medos e das suas revoltas e aproxima-nos da estrutura de poder otomana, dos seus mitos, da sua linguagem e dessa cultura política tão diferente da que conhecemos na parte restante da Europa e que se instalou em todo aquele território ao longo de 300 anos. Andric desperta em quem o lê a curiosidade pela história desses turcos otomanos e do império que instalaram após a queda do império bizantino nesse longínquo ano de 1453 e que os trouxe até às portas de Viena. O escritor jugoslavo vai descrevendo em relato a vivência dos estratos do poder e daqueles que eram os donos da rua e, mesmo nas cenas em que se percebe um grau de violência que nos desarma, face à facilidade com que se pode morrer, não exagera nas palavras, escreve com o grau de realidade necessária mas sem ir além do que é necessário para a compreensão do acontecimento.
A genialidade da escrita deste Nobel da Literatura deixa-nos esse lamento de pena cada vez que chegamos ao fim de um dos seus romances.

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