Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

25 dezembro, 2007

LEITURAS


Aqueles que me conhecem e sabem da minha paixão pela história, uma vez ou outra perguntam o que tem a história a ver com a minha profissão, ou seja, com os acidentes de viação. Aparentemente nada. Na verdade, tem tudo. Na averiguação dos acidentes, tal como na história procurando servir-nos de técnicas e do auxílio das outras ciências, também vamos à procura do passado, melhor dito, procurar reconstruir o passado, tentar compreender o que aconteceu, como aconteceu, tentar perceber as causas face às consequências que se conhecem. Tal como na história, o difícil é percebermos o quadro mental dos intervenientes e, tantas vezes, ainda como na história, há intervenientes que já não se encontram presentes. No fim, temos uma interpretação do que se terá passado e dificilmente temos exactamente o que se passou.
Há dias tive outra prova de que os acidentes estão mesmo no caminho da história e aqui e ali cruzam-se numa partilha de conhecimento. Um dos meus amigos tem a gentileza de me fazer chegar as crónicas desse andarilho do mundo que dá pelo nome de Gonçalo Cadilhe. Este homem que realiza sonhos que tive e mantenho mas que não hei-de realizar, pois tanto nos agarramos à normalidade que nos colamos a ela, a essa realidade que é o automatismo do quotidiano, daí que viajo apenas em sonhos. Construo mundos de fantasia e viajo nos olhos deste Cadilhe. Uma das últimas viagens que decidiu realizar foi seguir os caminhos de Magalhães, o Fernão, sim esse, que deu a volta ao mundo vai para cinco séculos. Começou em Sabrosa onde nasceu segundo uma das hipóteses conhecidas e da última vez que o encontrei estava na Ilha de Moçambique. Dessa crónica respiguei este diálogo espantoso:
“Em quase vinte anos com carta de condução, nunca fui multado. Alguma vez teria de ser a primeira. Acontece agora, no mais improvável dos lugares, na mais caricata das situações. O apito agudo atinge-me com a precisão de um dardo. É comigo. «Então não respeita os sinais?»
Sinais? Os carros deixaram praticamente de circular há vários anos nas ruas da Ilha de Moçambique, os poucos que ainda o fazem não justificam o «face-lift» dos stops, dos proibidos, dos sentidos únicos completamente enferrujados e retorcidos que ainda sobrevivem. O «meu» sinal está ali de facto, à entrada da praça, um «proibido» que o tempo quase apagou. Explico que não vi o sinal, parecia-me desactualizado, enfim, nem reparei.
O oficial de trânsito não quer ouvir justificações: «A bicicleta estava em contra-mão, dá-se a volta à praça pelo outro lado». Sugiro que está a exagerar, é só uma bicicleta numa praça sem qualquer outro veículo, nem sequer andam peões na rua a esta hora que faz muito calor. Aceita que pode estar a exagerar, mas a infracção subsiste. Ainda tento um último argumento, emotivo: «Num lugar que me recorda tanto o meu Portugal, não é culpa minha que se circule pela esquerda como os ingleses». Remata, inflexível: «A culpa pode não ser sua, mas o pecado foi seu.»”
Pois é verdade, esta estocada final, digna de um mestre mesmo que polícia de trânsito na Ilha de Moçambique, veio mais uma vez demonstrar o quanto a história está ligada à sinistralidade rodoviária, pois até os portugueses que tanto cultivam o analfabetismo e a falta de cultura e que sempre estão prontos a exigir excesso de zelo aos outros para compensar a sua imprevidência, haverão de perceber esta verdade terrível que lhes passarei a lembrar: «A culpa pode não ser sua, mas o pecado foi seu».

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