Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

07 janeiro, 2009

LEITURAS


Os delírios solitários e as tortuosas reflexões de um jovem escritor, errando através da vida urbana, acompanhado pela sua inexorável antagonista, a fome. Um romance que é o início da grande literatura do século XX.

O tema da perpétua e solitária vagabundagem do narrador, presente em «Fome», será igualmente central em romances famosos como Mysterier (1892), Pan (1894), Den sidste Glaede (1912) [«A última alegria»], nos quais um estranho itinerante se insinua na vida de uma pequena comunidade rural, vivendo numa paz idílica com a natureza envolvente. Este individualismo e panteísmo serão uma imagem de marca permanente na escrita de Hamsun. Figura social controversa, acusado de ser simpatizante nazi aquando da ocupação do seu país, tal como L.-F. Céline será, também ele, perseguido pela justiça depois da II Grande Guerra e os seus livros queimados na praça pública. E tal como o escritor francês a conturbada experiência deste tempo será registada em livro, na sua obra Pa gjenngrodde Stier, de 1949. Morre em sua casa, em Norholm, com 92 anos de idade. As suas obras estão traduzidas com sucesso em todo o mundo e a sua influência é reconhecida e assumida por muitos autores contemporâneos.

A acção de «Fome», um romance marcante e considerado um clássico da literatura mundial, decorre nos finais do século XIX. O narrador, um jovem escritor, um homem solitário, deambula pelas ruas de Kristiania (actual Oslo) numa miséria extrema, enregelado pelo frio e tolhido pela fome. Essa miséria em que vive, provoca-lhe momentos de delírio e violentas variações de humor. Mas cedo nos apercebemos de que a “fome” desse sonhador não é apenas física. Há a procura de uma identidade e de um reconhecimento dentro das suas próprias alucinações.

Knut Hamsun (1859-1952), Prémio Nobel de Literatura em 1920, nasceu em Gudbrandsdalen e cresceu na pobreza em Hamaroy, na Noruega. Aos dezassete anos tornou-se aprendiz de sapateiro e, quase na mesma altura, começou a escrever. Passou alguns anos da sua vida nos Estados Unidos da América, viajando e exercendo várias profissões. Em 1899, publicaria as suas impressões sobre este período da sua vida np volume, Fra det mederne Amerikas Aandsliv. Regressado à Noruega publica o seu muito aclamado romance «Fome» (1890). Esta obra, devido ao uso iconoclasta que faz do monólogo interior e à ruptura com a tradicional lógica interna do romance é considerada pela crítica como um marco da literatura moderna, antecendendo obras de escritores como Franz Kafka.


A Escandinávia exerce uma atracção sobre uma parte das pessoas e a mim de uma forma particular. Não sei explicitar exactamente os motivos, mas certamente que a proximidade ao árctico, a imensidade do território com as suas neves, as suas florestas, os seus lagos e as suas montanhas, as suas aldeias organizadas, disciplinadas, pequenas e isoladas. No caso da Noruega, o seu espaço, estendendo-se ao longo do mar até tocar no círculo polar, o seu terreno rochoso a tombar abruptamente sobre o oceano, formando gargantas de água terra dentro, tudo isto, com a imagem sempre presente da neve, do frio, da solidão e do isolamento. E as pessoas, como serão as pessoas? Qual o quadro mental destas gentes que enfrentam estes ambientes que aos habitantes europeus do sul, parecem quase hostis? Por mim, desconheço.
A leitura é sempre um fascínio, pela descoberta, pelo prazer, pelas imagens proporcionadas, pelos sonhos que alimenta, pelos conhecimentos que oferece a quem lê. Há dias, mão amiga, proporcionou-me a descoberta de um antigo Prémio Nobel, norueguês e com um título expectante e chamativo, «Fome». Parti à descoberta de Knut Hamsun, curioso e intrigado e acabei envolvido numa leitura que se desenrolou num misto de encanto e perturbação.
É verdade que a escrita, para aqueles que fazem da pena um modo de vida, carece de momentos de inspiração que transbordam do interior e necessitam de tempo, de espaço que quase sempre não se compadece com a existência de um emprego de rotina, de horários certos de uma atenção que não permite o devaneio que permita deixar viajar a imaginação. Mas quando as condições económicas não ajudam, não há alternativa a esse esforço duplo até que a situação financeira nos permita um dedicar completo e pleno a esse mester que é escrever. O personagem do livro aspira ser escritor, mas não tem dinheiro e por estranho que nos possa parecer, não procura trabalho, aguarda que o dinheiro surja de algures enquanto espera a inspiração e toda a história se desenvolve em torno da vida de um homem que percorre solitário e esfomeado as ruas da cidade de Oslo nos finais do século XIX, aguardando que a inspiração surja do nada e lhe permita escrever um artigo que o alimente. Mas só uma vez surge essa inspiração e o resto do tempo é uma sobrevivência espantosa salpicada aqui e ali com umas esmolas que uma integridade moral que pretende salvar, recusa aceitar como tal. Apesar da história se desenvolver quase unicamente em torno deste personagem e dos seus dias serem quase iguais, a escrita tem uma força extraordinária e arrebatadora, ganha-nos para a vivência do personagem, faz-nos desejar que uma solução seja encontrada e acabamos a desejar que a história tenha um fim, pois até para o leitor parece insuportável e intolerável a vida que se desenrola aos nossos “olhares”. E o fim, acaba por chegar, quando já tudo parecia perdido, o candidato a escritor, desiste da sua fome e arranja trabalho, embarcando num navio cargueiro e numa profissão que não sabe exactamente o que é. Pelo caminho, deixa-nos desenhos da fragilidade humana e do estado de degradação, moral e ética, a que podemos deixar arrastar-nos, quando colocamos a disciplina, as regras e os comportamentos, saírem para além dos limites de uma vivência colectiva, à qual, não devemos fugir. Podemos ser livres e autónomos no interior de um colectivo, mas marginalizar-nos dele é complicado e perigoso. Por várias vezes, o nosso personagem viveu na fronteira do razoável e do irracional e, muito provavelmente, só o acaso e alguma sorte o impediram de dar esse salto mortal.
Dos contactos exteriores à sua fome ressaltam dois encontros femininos. A primeira mulher, aparentemente vivendo numa prostituição educada e mascarada, aceitou-o enquanto o pensou bêbado, mas rejeitou-o quando compreendeu que a diferença do seu comportamento resultava da fome, pois percebeu que esta podia gerar instintos incontroláveis, enquanto os que resultam da bebedeira sempre são previsíveis. Em última instância, mais vale consolar um bêbado do que um louco, mesmo que ainda numa fase de candidatura. A segunda leva-nos até esse estado de degradação moral que faz abalar a nossa confiança na condição humana. A hospedeira em relações sexuais com o hóspede quase acabado de chegar, na cama do velho entrevado e com o marido deleitado espreitando pelo buraco da fechadura é de uma grandeza inferior de tal ordem que nos deixa arrepiados. A capacidade humana é tão elevada para a heroicidade como o pode ser para a indignidade.
É bem possível que o pormenor e a riqueza da escrita possam traduzir uma vivência pessoal do próprio Knut Hamsun, caso contrário, custa a crer que pudesse ter escrito um livro tão extraordinário como este romance a «Fome».
Um óptimo livro que merecia nova leitura não fosse a perturbação que nos deixa, mesmo conhecendo-se o fim da história.

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