Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

31 agosto, 2010

POESIA AO AMANHECER


Bom dia, meus Amigos

Há dias lia eu a parte da necrologia de um jornal partidário quando deparo com o falecimento de um António Freitas de 81 anos de Viana do Castelo. Este Freitas, conheci-o em 1972. Era aquilo que nós hoje definiríamos como um homem calmo, simples e que passava despercebido, numa cidade de província. Trabalhava no que vulgarmente chamamos, uma loja de fazenda e à noite dava aulas ensinando a escrever à máquina. Habitava num 2º andar em frente ao rio, no 1º funcionava a escola e no rés-do-chão, uma confeitaria onde tínhamos encontros discretos. Tinha três filhos. Duas raparigas. A mais velha tinha já ares de mulher e queria aparentar mais sabedoria do que tinha. A do meio era discreta como o pai. Ruiva, sorria com um ar maroto, com aquela marotice que nas mulheres significa um misto de rebeldia e irreverência. O rapaz era ainda muito novo e, portanto, não entra na história. O Freitas era um democrata o que naquela época significava ser da oposição, mas não se notava. Desde o primeiro momento que as nossas ondas caminharam paralelas e quando tinha de ir a Viana, ficava em casa dele. No Verão desse ano, o fascismo começava a entrar numa agonia que se acelerava e esse tal Partido onde exercia a minha actividade política decidiu criar uma organização na zona industrial, cuja responsabilidade recaiu sobre mim e um outro companheiro. Só que no Outono uma distribuição de propaganda levou alguns jovens à prisão, entre os quais esse meu companheiro, hoje meu colega de trabalho. Fala um, fala outro, as prisões foram-se sucedendo. Fui aguardando a minha vez, enquanto ficava politicamente seco, quer dizer, sem actividade. Até que na manhã de 30 de Dezembro aquelas figuras pardas que sustentavam o regime entraram pela casa dentro. Foi só o tempo de abrir a clarabóia, deitar papéis para o telhado e aguardar. Afinal, sabiam menos do que se pensava e deixaram apenas uma notificação para me apresentar no dia 2 de Janeiro. Claro que não me apresentei. Avaliadas as circunstâncias, decidiu-se que seguia para Viana para casa do Freitas. Assim me pus a caminho, parando em Famalicão para mudar de fisionomia. Chegado às margens do Lima, expus a situação àquele homem que tantas vezes me tinha recebido e para espanto meu, não foi nada receptivo a essa ideia. Saiu e no regresso, disse que poderia ficar até Domingo, mas na 2ª feira tinha de procurar outro poiso. Assim fiz. A Elisabete, uma miúda de Ponte de Lima cuja beleza nos deixava tontos prometeu trazer-me de volta ao Porto, só que à hora marcada não apareceu. Uma hora passada quando estava prestes a ficar congelado na berma da EN13, meti-me ao caminho. Alcançou-me 5 quilómetros à frente e acabei por lhe perdoar, pois se não tivesse aparecido seria pior. Após o 25 de Abril, cheguei a encontrar-me com o Freitas, mas a euforia da revolução não deixou tempo para esclarecer a razão de não me ter deixado permanecer uns tempos em sua casa. Na altura, argumentou com os filhos, quer dizer com as filhas, mas não entendi. Só que ao ler o resto da notícia da sua morte, apareceu um pequeno pormenor que se revelou grande em toda esta história. Dizia a notícia que este Freitas era um grande amigo do Partido e a sua casa serviu muitas vezes de ponto de apoio para os elementos clandestinos. Tinha sido este o segredo. Estes homens e as suas casas não podiam ter de forma alguma qualquer comportamento que chamasse as atenções da polícia. Ora, se eu ali ficasse era como mel a atrair as abelhas. Daí a sua discrição. Já não vou a tempo de pedir desculpa ao António Freitas e naturalmente que vós, meus amigos, não têm culpa que eu transforme este espaço que se quer de poesia ao romper da alva numa história destas, mas pelo menos atestam como testemunhas que corrigi o erro de ter pensado de forma defeituosa. Não cheguei a pensar mal, mas também não pensei bem e agora, esta notícia vem colocar tudo no seu devido lugar…

SÚPLICA

Não digas, musa,
Por quantos versos reparti o pranto
Que chorei neste mundo.
Não contes
Os mil segredos que te confiei
Nas horas de abandono.
Não reveles à vida
O amor que lhe tive
E de que fostes única confidente.
Perdição consciente,
Que mais ninguém me veja
Nesta triste nudez de sonhador.
Que o teu silêncio seja
O meu pudor.

MIGUEL TORGA

A virtude, como todas as coisas, tem as suas tentações, bem mais perigosas porque não desconfiamos delas. Antes de vos conhecer, sonhava com o casamento. Aqueles que têm uma existência irrepreensível sonham talvez com outra coisa; compensamo-nos assim de apenas termos uma natureza e de vivermos apenas uma das faces da felicidade.

MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”

Porto, 13 de Julho de 2005

30 agosto, 2010

LEITURAS


Podia tratar-se de uma estrela viva ou podia tratar-se de uma estrela morta. Por vezes, consoante a forma como víssemos, disse ele, essa questão tinha pouca importância, pois as estrelas que vemos de noite vivem no reino da aparência, são aparência, da mesma maneira que os sonhos são aparência. De tal maneira que o viajante da estrada 80 a quem um pneu acabou de rebentar não sabe se o que contempla na imensa noite são estrelas ou se, pelo contrário, são sonhos. De alguma forma, disse ele, esse viajante parado também é parte de um sonho, um sonho que se desprende de outro sonho assim como uma gota de água se desprende de uma gota de água maior a que chamamos onda. Uma vez chegado a este ponto, Seaman advertiu que uma coisa é uma estrela e outra coisa um meteorito. Um meteorito nada tem a ver com uma estrela, disse ele. Um meteorito, sobretudo se a sua trajectória o levar a colidir directamente com a Terra, não tem nada a ver com uma estrela nem com um sonho, mas sim, talvez, com a ideia de desprendimento, uma espécie de desprendimento ao contrário. Depois falou das estrelas-do-mar.

Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico onde a palavra destino foi usada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome de Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões. Madrid, em oito. A palavra amor foi pronunciada duas vezes, uma por cada um. A palavra horror foi pronunciada em seis ocasiões e a palavra felicidade numa (empregou-a Espinoza). A palavra resolução foi dita em doze ocasiões. A palavra solipsismo, em sete. A palavra eufemismo em dez. a palavra categoria, no singular e no plural, em nove. A palavra estruturalismo, numa (Pelletier). O termo literatura norte-americana, em três. As palavras jantar e jantamos, pequeno-almoço e sandes, em dezanove. As palavras olhos, mãos e cabeleireira, em catorze. Depois a conversa tornou-se mais fluida.

O que liga quatro germanistas europeus (unidos pela paixão física e intelectual em torno da obra de Benno von Archimboldi) ao repórter afro-americano Oscar Fate, que viaja até ao México para fazer a cobertura de um combate de boxe? O que liga este último a Amalfitano, um professor de Filosofia, melancólico e meio louco, que se instala com a filha, na cidade fronteiriça de Santa Teresa? O que liga o forasteiro chileno à série de homicídios de contornos macabros que vitimam centenas de mulheres no deserto de Sonora? E o que liga Benno von Archimboldi, o secreto e misterioso escritor alemão do pós-guerra, a essas mulheres barbaramente violadas e assassinadas?
2666. para se ler sem rede – como num sonho em que percorremos um caminho que nos poderá levar a todos os lugares possíveis.

Roberto Bolaño nasceu em 1953, em Santiago do Chile. Aos quinze anos a família mudou-se para a Cidade do México. Abandonou os estudos para regressar ao Chile poucos dias antes do golpe que depôs Salvador Allende. Ligado a um grupo trotsquista, foi preso pelos militares e libertado algum tempo depois. De volta ao México, fundou com amigos o Infra-Realismo, contra o establishment das letras latino-americanas e suas figuras de proa, de Octavio Paz a Garcia Márquez. Nos anos setenta, Bolaño vagabundeou pela Europa, após o que se instalou em Espanha, na Costa Brava, com a mulher e os dois filhos. Morreu em Barcelona, em Julho de 2003, aos cinquenta anos. Entre outros prémios, como o Rómulo Gallegos ou o Herralde, Roberto Bolaño já não pôde receber o prestigiado National Book Critics Circle Award, o da Fundación Lara, o Salambó, o Ciudad de Barcelona, o Santiago de Chile ou o Altazor, atribuídos a 2666, unanimente considerado o maior fenómeno literário da última década.

Ao iniciarmos a leitura deste livro podemos imaginar-nos esgotados, cansados, porventura, fartos e, no entanto, nada disso acontece. A viagem por estes cinco romances ou histórias com os seus personagens diversificados, encontra-nos sempre no desejo de prosseguir e cada um deles deixa-nos essa sensação de lamento por chegar ao fim e, desejosos que o final permita a reunião de todas as histórias ou o encontro de todos os personagens, o que não chega a acontecer, pois a morte do autor não o deixar concluir a obra que provavelmente idealizou. Desde os críticos com a sua vivência pelo leito da literatura e da crítica, com uma paixão atravessando as suas vidas e uma mulher que ama ou os experimenta a todos, para terminar amando o único cujas palavras e gestos nunca deixaram transparecer desejo. Os Amalfitanos perdidos nessa cidade mexicana nas margens do deserto e nos rios da miséria e da pobreza e a jovem Rosa, deambulando pela fronteira invisível do mistério e da morte. A realidade, ou as realidades contadas como se falássemos de outra coisa, talvez em género de conto, talvez como se fizéssemos um relato de algo que pode até nem ser verdade. Tudo isto surge neste romance de título enigmático que nos prende a atenção para a sua leitura ao longo das suas mil páginas. Roberto Bolaño no seu melhor.

25 agosto, 2010

POEMAS


Missão

«Deixem passar...»
Havia sentinelas a guardar
A fronteira do sonho proibido.
Mas ergui, atrevidi,
A voz de sonhador,
E passei
Como um rei,
Sem dar mostras de um íntimo terror.

E cá vou, a passar,
Aterrado e sozinho,
A lembrar
O Santo e a Senha com que abri caminho...

Miguel Torga

24 agosto, 2010

POESIA AO AMANHECER


Bom dia, meus Amigos

Como sabem a Isabel Allende é para mim um dos escritores de referência. Quando publica um livro, é dos raros momentos em que não penso no dinheiro que tenho, simplesmente compro. Assim foi há dias com o seu último livro, “Zorro”. Pois, desta vez resolveu contar a história daquele justiceiro californiano, uma espécie de Zé do Telhado da ocupação espanhola das Américas. E naturalmente lá estou a devorar aquela escrita entre o fantástico e a magia. Num determinado momento, distingue uma das personagens femininas como possuindo um olhar de açúcar queimado. Por momentos, parei a pensar que ao longo da vida retive alguns olhares, de mulheres para que nos entendamos. Olhares, retemos muitos, mas três ficaram a viver-me na memória. Aos 17 anos quando procurava desesperadamente uma namorada, cruzava-me todos os dias com uma jovem, morena e de olhos negros. Naquela época, vinha a pé desde o Prado do Repouso até Francos, que o dinheiro era caro e os transportes também. A única coisa barata era o trabalho, pelo que as duas questões eram inconciliáveis. A jovem saía do Bairro de Francos e não sei para onde ia. Por vezes, mudávamos de percurso, mas sempre nos encontrávamos. Durante muito tempo só os olhares se cruzaram, porque da boca, especialmente da minha, não saíam palavras. Tenho dito que ao longo da vida nunca me livrei de duas facetas, a timidez e o medo, mas que os controlo o suficiente para não me impedirem de fazer o que tenho de fazer. Contudo, naquele tempo, ainda não os dominava. Uma tarde, pela tardinha mesmo, quando se adivinha que o sol começa a escorregar pelas paredes do dia, após nos termos cruzado, volvidos 5 metros, ambos olhamos para trás e aquele olhar negro a sorrir ficou para sempre nas imagens mais lindas da memória. Estranhamente das mulheres de quem gostei muito, esta foi a única de quem não soube o nome. Chamei-lhe Natacha que é o diminutivo de Natália, lembrando-me da canção francesa, Natalie. Dois anos mais tarde, ao chegar a Moscovo e no primeiro dia de aulas, surge-me, algures pelos corredores, uma mulher jovem de cabelo aloirado e feições rígidas e uns olhos amendoados, entre a amêndoa e o mel. Nessa época, eu escondia os meus olhos atrás de uns óculos graduados que se esbatiam numa espécie de casca de cebola, pelo que o que tinha para oferecer e nada era quase a mesma coisa. Mas olhei, olhei sempre, durante 10 meses e no dia 24 de Abril de 1974 foi ela incumbida de me ir buscar a um hospital nos arredores da capital soviética. Foi assim que me apareceu uma manhã no meio de um nevão com as amêndoas, o mel e um olá transportado por um sorriso tão bonito como o olhar. Chamava-se Elena e acho que já vos falei dela. O tempo passou e um dia casei. Naquela ingenuidade que caracteriza os homens acreditei, tal como quando fiz a primeira comunhão, é verdade, fiz a primeira comunhão, pois aos 11 anos ainda não tinha questões filosóficas a colocar ao Deus dos Homens, mas como dizia, ao confessar-me pensava que não voltaria a pecar, até ao momento em que confessado e comungado, saí da igreja e o destino fez-me tropeçar com uma palavra menos ditosa. Percebi então que iria ter de me confessar muitas vezes e acabei por a partir daí, confessar-me só aos amigos. Pois, quando casei, pensava que também não teria olhares para outras mulheres bonitas. Aliás, deixei de acreditar que pudessem até existir outras, até àquela noite em que entrei na biblioteca da escola onde me esforçava por tentar chegar à faculdade e aquela menina estava ao fundo da mesa, parada e olhar fixo. Parecia que olhava o horizonte, mas não era verdade, caminhava comigo ao longo da sala e não consegui libertar-me daquela doçura nocturna. Ainda hoje gostava de voltar àquela biblioteca e tenho a certeza que aqueles olhos carregados de ternura ainda estariam lá a olhar para mim. Chamavam-lhe Mané que era o aglutinar do nome, Maria Manuel. Foi quase assim como acabo de vos contar e veio agora a Isabel Allende mexer-me na memória com aquela do olhar cor de açúcar queimado. Até queimei açúcar para descobrir que fascínio podia ter aquele olhar.

MENINA DOS OLHOS TRISTES

Menina dos olhos tristes,
O que tanto a faz chorar?
- O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.

Senhora de olhos cansados,
Porque a fatiga o tear?
- O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.

Vamos, senhor pensativo,
Olhe o cachimbo a apagar.
- O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.

Anda bem triste um amigo,
Uma carta o fez chorar.
- O soldadinho não volta
Do outro lado do mar.

A Lua, que é viajante,
É que nos pode informar.
- O soldadinho já volta
Do outro lado do mar.

O soldadinho já volta
Está quase mesmo a chegar.
Vem numa caixa de pinho.
Desta vez o soldadinho
Nunca mais se fez ao mar.

REINALDO FERREIRA, in “O Nosso Amargo Cancioneiro”

Falamos sobretudo daqueles que amamos quando os não temos a nosso lado.

MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”

“Em 1962, Portugal viu negado o seu primeiro pedido de adesão ao Mercado Comum Europeu. O “clube” inicial opunha-se porque o país não tinha um regime democrático e mantinha relações de preferência comercial com as suas colónias.”

LEONOR VAZ MONTEIRO “Salazar e o Mercado Comum Europeu”, in “História", Junho de 2005

Porto, 12 de Julho de 2005

23 agosto, 2010

LEITURAS


Jesusalém é seguramente a mais madura e mais conseguida obra de um escritor no auge das suas capacidades criativas. Aliando uma narrativa a um tempo complexa e aliciante ao seu estilo poético tão pessoal. Mia Couto confirma o lugar cimeiro de que goza nas literaturas de língua portuguesa. A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado, diz um dos protagonistas deste romance. A prosa mágica do escritor moçambicano ajuda, certamente, a reencantar este nosso mundo.

MIA COUTO nasceu na Beira, Moçambique, em 1955. Foi jornalista. É professor, biólogo, escritor. Está traduzido em diversas línguas. Entre outros prémios e distinções (de que se destaca a nomeação, por um júri criado para o efeito pela Feira Internacional do Livro do Zimbabwe, de Terra Sonâmbula como um dos doze melhores livros africanos do século XX), foi galardoado, pelo conjunto da sua já vasta obra, com o Prémio Vergílio Ferreira 1999 e com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas 2007. Ainda em 2007 foi distinguido com o Prémio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura pelo seu romance O Outro Pé da Sereia.

Mia Couto encanta-nos sempre, na leitura dos seus livros, sentimos essa música que sopra de África, mesmo que não tenha sons. Sentimos ora a savana com as suas eternidades e infinitos, ou as suas florestas, plenas de feitiços mágicos. Embala-nos como se estivéssemos pousados no ramo de uma árvore sem folhas, deixando-nos baloiçar nesse vento sem pressa que vai passando, como se não existisse, nem dia, nem noite. Neste romance, levou-nos ainda mais longe, colocou-nos nesse instante de reflexão em que olhamos para nós e para o que nos rodeia e, conduz-nos a corrigir a rota ou reforçá-la se já a corrigimos antes, mas sobretudo, a deleitar-nos com a verdade que encontramos nas suas palavras. Fala-nos o velho numa das suas primeiras noites do “silêncio mais bonito que" escutou e lembramo-nos que há de facto silêncios muito belos, sobretudo se no interior deles se encontrar alguém que procuramos ou aguardamos. Para pouco depois se enraivecer nas palavras, “Durante muitos anos alimentei feras pensando que eram animais de estimação”. Quantas vezes a vida nos revela esta surpresa ou quanto surpreendentes conseguem aparecer-nos os seres humanos, escondendo ou guardando dentro de si o melhor e pior e, no entanto, não podemos deixar de amar e perseguir a vida, pela beleza que, pelo menos nalguns instantes carrega. Ou ainda a surpresa do jovem quando o isolamento o privou do olhar e do sentir feminino e se assombrou perante a primeira imagem real. “Aquela era a primeira mulher e ela fazia o chão evaporar. Passaram-se anos, tive amores e paixões por mulheres e, sempre que as amei, o mundo voltou a fugir-me dos pés. Aquele primeiro encontro marcou em mim, fundo, o misterioso poder das mulheres.” Sempre que as amei, diz-nos nesse suposto que podemos não as amar, mas então o que é, não o amor, mas amar? E porque provocam as mulheres nos homens essa sensação de que o mundo lhes fuja dos pés com o seu misterioso poder?, acrescenta, sem interrogação. Sentimos essa capacidade que viaja nas mulheres de nos imobilizarem os sentidos e incendiarem as veias. Não aquelas que nos fazem explodir o desejo ou as outras cuja beleza corporal nos derrete o olhar, mas as outras, essas mais raras para cada um de nós, as que amamos e se tornam inesquecíveis mesmo quando partem. Deixam um silêncio profundo e imenso que só é belo pela recordação que deixam na memória. Zacaria acrescenta um pouco de tristeza a esta verdade quando revela que “Nunca nenhuma mulher me escreveu”. Que maior solidão pode acontecer na vida de um homem quando nenhuma mulher lhe escreve? Não, não existe mais profunda solidão que essa ausência. Nas palavras de uma mulher, viajam todos aqueles sentimentos que nos alimentam o viver da alma. Sem as suas palavras, a ternura e o afecto esvaem-se como se um rio terminasse em pleno deserto. E pelas palavras, podemos esconder-nos, podemos enganar-nos, mas podemos ser ao mesmo tempo verdadeiros, com essa verdade que guardamos no silêncio, na retaguarda do pensamento condicionados pelo mundo que nos censura, como o fizeram Zacaria e a sua madrinha. Que importou ser mentira algo que disseram de si próprios se o que disseram dos seus sentimentos era uma verdade? Como escreveu mais tarde a portuguesa a Zacaria, não sabia se Marcelo foi o amor da sua vida, mas foi uma vida inteira de amor e recomendava-lhe que nunca fizesse nada para sempre, a não ser amar. De facto, essa é a grande distância da paixão. Quando na verdade aprendemos esse estádio de amar, é como se algo ficasse gravado na memória. E acrescenta que “Reencontramos os nossos amores num próximo luar. Mesmo sem lagoa, mesmo sem noite, mesmo sem Lua. Dentro da luz, eternos, eles regressam, roupa flutuando na corrente de um rio”. Que mais dizer?

17 agosto, 2010

POEMAS


Saudade

Não digas,
Não acenes,
Não te lembres.
Que se mantenha mudo, hirto e sem memória
O nosso adeus eterno.
E que o poeta, do seu negro inferno,
Cante como puder
A trágica aventura de encontrar
E perder, a sonhar,
O teu aberto corpo de mulher.

Miguel Torga

11 agosto, 2010

POESIA AO AMANHECER


Bom dia, meus Amigos

E tal como estava previsto, aqui regressei ao fim destes dias em que tantas coisas foram diferentes. Na verdade, pouco foi como tinha pensado, mas desde o início sabia que iria ser assim. Fiz apenas algo do que programei. Passei pelas montanhas, cheguei a olhar o mar, uma ou duas viagens que me conduzem de quando em vez a lugares perdidos de terras sem nome e de gentes surpreendentes e estive por casa para alegria dos cães que adoram ter companhia. A partir de hoje serão eles, sobretudo, a sentir a minha ausência. Para pena minha, pouco li e não fui até junto do oceano ao fim da tarde quando as aves regressam a terra, as águas partem para outros destinos e o sol se esconde para dormir, nem ao cinema, olhar o grande ecrã e sentir a vida a pulsar do interior de personagens fantásticas. Apesar de tudo, cheguei a esquecer o relógio a tomar as refeições às horas que me apeteceu e, até aprendi a andar de bicicleta. Mas outros tempos virão, que é o mesmo que dizer, outros dias de férias chegarão para acabar o que comecei e principiar o que não cheguei a iniciar. Bem, voltei para a vossa companhia, pelo que o fim do que é diferente também tem coisas positivas.


Companheiros, enterrem-me na Ilha Negra,
defronte do mar que conheço, de cada área rugosa
de pedras e de ondas que os meus olhos perdidos
não voltarão a ver.

(…) todas as chaves húmidas da terra marinha
conhecem cada estado de minha alegria,
sabem
que ali quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra…

Quero ser arrastado
para baixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e pulveriza,
e logo pelos leitos subterrâneos, seguir
para a Primavera profunda que renasce.

Abram a meu lado o lugar para a que amo, e um dia
deixem que outra vez ela me acompanhe na terra.

PABLO NERUDA, “Canto Geral”, in “Presentes de um Poeta”

Éreis muito piedosa. Nessa altura, tanto vós como eu acreditávamos em Deus, entenda-se, naquele que tanta gente nos descreve como se o conhecesse.

MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”

“A melhor definição chegou pela voz de Jorge Barroso: um centro histórico não é um conjunto de casas ou de monumentos. É tudo isso honrando o passado e vivendo o presente com qualidade de vida. Um trabalho feito com a população e não uma tarefa feita em gabinetes povoados por iluminados.”

MANUELA GARCIA “O mundo dos centros históricos”, in “História", Junho de 2005

Porto, 11 de Julho de 2005

10 agosto, 2010

LEITURAS


Sarnau e Mwando protagonizam esta estória de amor. Da juventude à idade madura, com eles percorremos os dias, os meses, os anos, os encontros e os desencontros, a dolorosa separação, o desespero, o sofrimento e a alegria, as lágrimas e os sorrisos. Atravessamos cidades e aldeias, convivemos com a tradição, aprendemos os costumes e os hábitos de um povo. Sarnau vai crescendo e amadurecendo sob o nosso olhar. Impossível não admirar a coragem, a determinação, o orgulho e a humildade, a firmeza e o carácter desta mulher. E a sua fidelidade, mesmo nas circunstâncias mais adversas, ao amor. Ao seu primeiro e único amor. Mas haverá um reencontro? Serão Sarnau e Mwando capazes de apagar um tão longo e trágico passado? Existirá ainda para eles um futuro a partilhar? «Tu foste para mim vida, angústia, pesadelo. Cantei para ti baladas de amor ao vento. Eras para mim o mar e eu o teu sal. No abismo, não encontrei a tua mão.» Sarnau, tu que assim falaste a Mwando, chegarás a encontrar um pouco de paz? Voltarás a conseguir esboçar no rosto o teu lindo sorriso, há muito perdido no tempo? Abrirás enfim os braços para neles abrigares o amor? Ouvirás a melodia que o vento espalha no universo?

Dizem que sou romancista e que fui a primeira mulher moçambicana a escrever um romance (Balada de Amor ao Vento), 1990), mas eu afirmo: sou contadora de estórias, estórias grandes e pequenas. Inspiro-me nos contos à volta da fogueira, minha primeira escola de arte. Nasci em 1955 em Manjacaze. Frequentei estudos superiores que não concluí. Actualmente vivo e trabalho na Zambézia.
Paulina Chiziane

Há livros que devia ser obrigatória a leitura e depois de os lermos deveria ser obrigatória a releitura, para aprendermos a incluir ternura à vida e encher os campos de sonhos e poesia. E deveria ser ainda obrigatório que todos os homens encontrassem uma mulher a quem pudessem escrever um postal onde escrevessem: «Teus olhos têm o encanto de um poema divino» ou «semeaste em mim o perfume das acácias». Foi o que este livro me ensinou no interior dessa delícia que foi lê-lo.

09 agosto, 2010

POEMAS


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca

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