Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

19 julho, 2010

POESIA AO AMANHECER


Bom dia, meus Amigos

Os dias vão passando e somados registam já uma infinidade de tempo. Por vezes, apercebemo-nos pela memória que se vai esvaindo, pelas histórias que vamos repetindo e por uma certa forma de cansaço. Como a vontade é muita, vamos tentando iludir esses sinais, mas aqui e ali marcam a diferença com o passado. Mas deixemos, pois o S. João aproxima-se. Sentimos já o aroma dessa noite mágica. Aqui, ao contrário, a memória vai-se prolongando, com novas formas, outros gestos, mas sempre o salto à fogueira, os balões que tremeluzem no céu nocturno, as festas de bairro, as sardinhas assadas, o fogo que estaleja noite dentro e aqui e ali uma cascata e alegria, muita alegria até ao amanhecer e, por vezes ao longe o som de uma canção, “se ela soubesse/voltava para me abraçar”. Ah, é a nossa festa única, a noite de todas as noites. Bem e de seguida vou de férias o que significa estar ausente duas semanas. Não vou a lado nenhum diferente de Leça da Palmeira. Por lá ficarei a pintar portas e janelas e paredes interiores. São horas de silêncio, por vezes de grande sossego em que o pensamento desabrocha enquanto o pincel corre num ir e vir constante. Serve para recordar, pensar e reflectir. Ajuda porque afastamos as preocupações por umas horas. Quem sabe conseguirei arranjar ainda o jardim e fazer umas pequenas obras. Claro que são coisas a mais, mas temos sempre de projectar mais do que é possível conseguir. Sobretudo, queria afastar o relógio, deixar de ter horas marcadas, de vez em quando caminhar até ao mar e olhar o horizonte e, antes de mais, ler, ler muito, o mais que puder, ao fim da tarde quando entre as minhas nespereiras descer uma calma silenciosa. Assim, desprendido de tudo. Enfim, duas semanas não passam depressa, antes pelo contrário o tempo galopa. Em certa medida ainda bem, pois caso contrário sentia demasiadas saudades vossas e a quem teria para dizer estas palavras perdidas e estas histórias, sem história? Até breve e esperem por mim.

MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in “Cem Poemas de Sophia”

Disse-vos o quanto era sensível à doçura das mulheres: experimentava, junto de vós, um sentimento novo de confiança e de paz. Apreciáveis, como eu, os longos passeios pelo campo, que não levam a lado nenhum. Não precisava que levassem onde quer que fosse; estava tranquilo a vosso lado.

MARGUERITE YOURCENAR, in “Alexis ou o Tratado do Vão Combate”

“Há trinta anos, um presidente da República recordava que «a pena é a detenção; não é mais do que a detenção». Mas actualmente as condições de encarceramento infligem a um número cada vez maior de prisioneiros muito mais do que a própria detenção. Recorre-se com frequência aos espancamentos, ao uso sistemático de algemas, ao trabalho insuficientemente pago mas tornado obrigatório a partir do momento em que muitas provisões de base deixarem de ser gratuitas.”

JEAN-MARC ROUILLAN “Prisioneiros que pagam sem cessar”, in “Le Monde diplomatique”, Junho de 2005

Porto, 23 de Junho de 2005

18 julho, 2010

LEITURAS


Viagem ao Fim da Noite é uma das obras-primas da literatura universal do século XX. Torrencial e desesperado, este romance foi saudado, na época, como um grande fresco das misérias da condição humana e como um exemplo de uma nova consciência da esquerda. Formosa ironia, com efeito. Poucos anos volvidos, a intelligentsia progressista arrepender-se-ia do seu prematuro entusiasmo, face à surpresa de sentido inverso que representaram Morte a Crédito e, muito principalmente, Bagatelles pour un Massacre. Falou-se então de fascismo e de infâmia a propósito do comportamento de Céline durante a ocupação alemã. A ambiguidade, porém, nem por isso se tinha desvanecido. Este homem, acusado de ter sido o mais feroz anti-semita das letras francesas, foi também primeiros a denunciar os ridículos do militarismo e os crimes da exploração colonial. De modo que, pondo de parte as querelas apesar de tudo insignificantes da ideologia, talvez ninguém melhor do que Georges Bataille se tenha apercebido do real significado deste romance: “podemos considerá-lo como a descrição das relações que um homem mantém com a sua própria morte (…), que não difere fundamentalmente de uma meditação monástica perante uma caveira”.

LOUIS-FERDINAND DESTOUCHES
[CÉLINE]
Nasce a 27 de Maio de 1894, em Courbevoie, e morre em Meudon, o seu exílio do interior, a 1 de Julho de 1961. Médico de profissão, viria pouco a pouco a ser reconhecido como um dos mais importantes escritores franceses do século XX, a despeito das suas posições políticas e da sua fama sulfurosa, que lhe valeram não poucas antipatias e mesmo, durante algumas décadas, uma verdadeira campanha silenciadora. A sua obra bastante vasta, inclui, para além deste Viagem ao Fim da Noite, que lhe valeu a celebridade logo em 1932, os romances Morte a Crédito (1936), Guignol’s Band (1944) Casse-Pipe (1949), Féerie pour une autre fois (1952) e Normance (1954), as ficções-crónica Rigodon (1961), Castelos Perigosos (1957) e Norte (1960) estes dois últimos publicados na Ulisseia, e que relatam a sua experiência alucinante da Alemanha de 1944-1945, e os panfletos Mea Culpa (1936), Bagatelles pour un massacre (1937), L’École des cadavres (1938) e Les Beaux Draps (1941).

É um livro que nos espanta, pela riqueza dos personagens, pela violência verbal, por esse drama que é estar no mundo e viver. Não chegamos a perceber o que seria para o personagem principal o estar bem, esse sentimento que tanto falamos e nem sempre conseguimos definir que é a felicidade. Não se chega a perceber se não deseja trabalhar, se prefere o comodismo de nada fazer, chega a admitir que a riqueza é esse estado em que tudo nos é oferecido, como se a riqueza possa ser comparada ao trabalho enquanto valor social. Reclama e bem da guerra, deixando-nos essa ideia que assume um estado de parvoíce ou de tolo para lhe escapar, mas quando fala da guerra fá-lo com um sabor amargo, não que as palavras estejam deslocadas, não que não estejam correctas, não que os personagens não se encontrem bem caracterizados. Não, não é nada disso, simplesmente, deixa-nos incomodados, a nós que vivemos num tempo em que estudamos as palavras antes de as dizer, que cuidamos para que ninguém nos compreenda mal, que metaforizámos as afirmações, que procuramos sinónimos simpáticos para diminuir a carga que pesa sobre as palavras enquanto as verdadeiras, escondemo-las na nossa memória e quando nos acodem aos lábios, soletramo-las sem som. É interessante como este Ferdinand parece encontrar os problemas, mas a sua forma de estar também não o inibe de descobrir as saídas e de todas as situações em que se envolve, acaba por aparecer num outro local e melhor do que estava antes, mas sempre com um discurso sarcástico e corrosivo sobre as coisas e as pessoas. No entanto, na guerra, em África, nos EUA, e de novo em França, encontra mulheres que, de certa forma, o acolhem e o protegem e, salvo raras excepções, para elas, o discurso dele tem diferenças. Por fim, quando a sua vida parece escondida, estabilizada e pacífica, dois fantasmas ocupam-lhe o tempo, a memória e a aparente pacatez que procura. Com o final da história, é também o momento em que se liberta de ambos. Um Robinson que o perseguia desde a guerra e uma Madelon por quem parece nutrir uma espécie de amor e ódio. Nunca o afirma, mas pressente-se uma atracção por essa mulher ciumenta e persistente. Desde que a encontrou que não deixa de pensar nela Por esta ou aquela razão, aparece-lhe no dia-a-dia daquele hospital onde amarrou âncora. É bem possível que quando a esbofeteia esteja a exteriorizar esse sentimento que o enerva, de saber que gosta daquela mulher, e recusando assumir a derrota dessa dependência. É interessante que num livro tão destrutivo sobre a vivência dos seres humanos, tão destrutivo ou tão verdadeiro, as últimas páginas são preenchidas pela presença de duas mulheres e Sophie aparece como o momento do desejo. A sua descrição só alcança as formas da mulher e mesmo os gestos interpreta-os de um ponto de vista erótico. A beleza não a encontra nos sentimentos ou na graciosidade, mas antes na excitação do desejo que nasce dos movimentos transportados no corpo da enfermeira. Quantas vezes os homens confundem a paixão com o amor, o desejo com a ternura, o carinho com a posse. Tantas vezes falamos de abraços, tantos abraços exprimimos como intenção e, no entanto, raramente os damos, quase nunca os celebramos, muitas poucas vezes sentimos o corpo de alguém encostado ao nosso, não como uma propriedade, mas como um aconchego, um afago, uma dádiva de ternura. O livro perturba-nos, mas esses são os melhores livros.

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