Sede de Infinito

Infinito é o que se encontra para além de tudo, do conhecimento, da imaginação, do alcance da mão. Ter sede do que se encontra para lá da linha do horizonte é a imensa vontade de alcançar o que não vemos, o que não possuímos, o que não conhecemos, é por fim, uma forma de perseguir o saber e o conhecimento, se assim o desejarmos, conduzir o sonho através do tempo.

30 abril, 2009

CONTOS


Sentiu uma dor imensa nas pupilas e só com muita dificuldade conseguiu reabrir os olhos para tentar perceber o que ocorria em seu redor. Com uma lentidão que não controlava foi-se voltando e apercebeu-se que o sol brilhava com intensidade. A primeira percepção que teve foi do cheiro, um odor intenso e estranho que tardou em identificar com queimado. Estava agora com o tronco suportado pelo cotovelo esquerdo, mas as pernas doíam-lhe, pareciam inertes. A memória regressava em pequenos passos, com intervalos, e quando pôde distinguir as colunas de fumo ao longe, já foi maior a lembrança de como tinha chegado até ali, ao termo da Alfama.
Fora numa manhã linda como esta, mas sem o cheiro de incêndio e sem a memória da morte, que nascera numa casa térrea encostada às muralhas, mesmo junto à porta que dava para o rio, chamada Porta do Mar. Como veio ao mundo logo após uma noite de lua cheia, puseram-lhe o nome de Fátima alhmed allah, a abençoada por Deus. Tinha a pele escura, mas morena e não negra, cor noz-moscada como a que chega do oriente vinda de Sevilha.
Alusbuna era já então uma grande cidade, mas cresceu sempre ao longo destes dezassete anos passados. A infância passou-a ali, metade dentro de água e outra metade correndo pela Ribeira. Como o crescimento arrasta deveres, começou a conhecer o silêncio de casa, a vida doméstica e as obrigações familiares. Sempre que lhe era possível e o cortejo dos que a rodeavam, se distraía, escapulia-se até à margem e contemplava a imensidão das águas e as chegadas e partidas de longas escunas que vinham das lonjuras do mar que nunca tinha visto. Diziam-lhe que era imenso, tão longo que se podiam andar dias e noites sem ver terra nem lhe encontrarem o fim. Uma ocasião tinha conseguido sair a muralha pela Porta do Cemitério, mas foi tudo tão rápido que pensa não ter visto o mar, era apenas o rio, extenso, muito extenso, mas não era ainda o mar.
Há dias quando passaram os festejos do solstício do verão, foi prometida em casamento. Não conhece o noivo, naturalmente, mas quando se dirigia para a mesquita viu um rosto bonito e jovem, como o de um guerreiro e desejou guardá-lo só para si. Ele também pressentiu o olhar dela por sob o véu e aproximou-se. Chama-se Ibn Iuçufe Ahmed, o escolhido do céu. Prometeu procurá-la e Fátima partiu ansiosa.
Nunca tinha sentido algo parecido e não sabia o que pensar. Nessa noite não dormiu e de madrugada escapuliu-se e foi espreitar o rio. Foi então que reparou na imensa cortina de caravelas dos infiéis de Cristo. Pensou que sonhava, mas após ter esfregado os olhos via com mais nitidez a enorme cruz desenhada nas velas dos barcos.
Dias depois assaltaram a cidade, em nome de Deus, dizem. Arrasaram tudo na sua passagem. Os combates foram muitos e intensos, mas os cavaleiros do Deus cristão eram mais e estavam melhor armados. Durante vários dias, correu desorientada de lado para lado tentando escapar à loucura de homens perdidos. Ibn Iuçufe, o seu amado, o desejado do céu, partiu para as nuvens logo nos primeiros dias, espetado pela seta certeira de uma besta próximo da Porta de Alfofa. Procurou os seus, mas não os encontrou. Evitou regressar a casa, pois foi por ali que os infiéis venceram as defesas mouras e destruíram tudo. Foi apanhada quando tentava esgueirar-se por uma fenda da muralha. Eram três, um deles, cavaleiro. Agarraram-na, rasgaram-lhe a roupa e enquanto se riam, divertiram-se com o corpo. Pouco mais se lembra e não sabe como ficou viva. Acabou por sair e agora está ali a olhar o mar que nunca tinha visto. Está só e preferia ter morrido. Afinal, em nome de um Deus, roubaram-lhe quem amava e apesar de ser abençoada por outro Deus, este esqueceu-se dela quando mais precisou dele. Está sem nada, sem ninguém e sem futuro e tudo..., em nome de Deus. Corria o ano do Senhor de mil cento e quarenta e sete.

Escrevi isto como recordação permanente
Do meu sofrimento. A minha mão perecerá
Um dia, mas a grandeza ficará.

(Inscrição árabe na Sé Velha de Coimbra)

Serafão, 02 de Julho do ano da graça de 2004. Para a Ana a quem prometi um conto.

28 abril, 2009

POEMAS


"É o teu rosto ainda que eu procuro

Através do terror e da distância

Para a reconstrução de um mundo puro"


Sophia de Mello Breyner Andersen

27 abril, 2009

POESIA AO AMANHECER


Pois é, meus Amigos,

A partir de amanhã, estou de férias e no Sábado de manhã, que pensava ser bem cedo, mas já tenho dúvidas, parto numa viagem ao encontro da Suiça. É verdade, nem eu quero acreditar, mas preparem-se que com o dinheiro que levo, podem estar sujeitos a um telefonema para me irem buscar aí a meio da viagem para não ficar perdido a lavar pratos algures. Pois lá vou, por essa Trás-os-Montes de calor e lindas flores na primavera, atravessando a aridez de toda a Meseta castelhana até entrar por Lleida (que os espanhóis de Espanha chamam Lérida), nessa Catalunha sonhada e na sua capital, Barcelona do Mediterrâneo com toda a grandiosidade de uma nação rica. Entrarei na França pela terra mártir dos Cátaros e atravessarei os pântanos da Camargue à procura de Marselha e do Mónaco, terras de gente bem, bem de dinheiro, entenda-se. Rumarei então a Génova esse porto marítimo que a Idade Média e o Renascimento consagraram como uma zona de expansão e de riqueza e que muitos pilotos deu às viagens de navegação e de conquista (nunca chamamos assim, claro). Depois, bem depois, será Milão, com a sua catedral e o seu castelo medieval tantas vezes destruído como castigo pela independência dos seus habitantes. No resto da tarde, rumaremos a norte e após contornarmos o Lago Magiore, penetraremos na Suiça através de Locarno. A partir daqui será comprovar se o que vimos nos filmes é verdadeiro (de certeza que é) e viajar para norte à procura de Luzern e da miúda que encontraremos ao fim de 4 meses e meio. Numa pequena visita à Suiça passaremos por Zurique e tentarei recordar uma visita de há trinta anos, estender o olhar pelo lago Constança, visita a St. Gallen e regresso a Luzern. Aqui começa o regresso, por Berna e Geneve onde nos despedimos da miúda e entramos na França a caminho de Lyon e Toulouse para entrarmos em Andorra numa travessia dos Pirinéus a caminho de Espanha. Tudo agora será mais rápido porque quando voltamos já é mais a tristeza do que a alegria. Todas as festas são assim. Ainda deve dar tempo para descermos a Madrid por Guadalajara e darmos uma espreitadela à capital vizinha, que dizem ser de nuestros hermanos, mas que tenho muitas dúvidas pois falam sempre para nós como se fossem cabeça de casal. E no fim, já no fim, a última saída para Ávila, Salamanca e a entrada pelo IP5 nessa pátria amada que se cobriu de bandeiras num misto de parolice e de amor pátrio, mas que no fundo da alma dos mais puros se converteu numa manifestação de unidade por um objectivo que se tornou comum e agregador das gentes e das vontades. E no dia 26, se Deus quiser, o tempo ajudar e o dinheiro deixar, cá estarei de novo com um grande abraço para todos vós.

O DESTINO DA LIRA

Cantar o amor é destino
Quando o seio pulsa ardente,
Quando no nosso horizonte
Surge a imagem resplendente
Dum sol que a aridez da vida
Transforma em jardim florente.

Mas quando a chama se extingue,
Que no peito nos ardia,
A lira não canta amores,
Nem os sonha a fantasia;
Então natureza e pátria
Só nos inspiram poesia.

Depois, os anos declinam
Como o sol no azul dos céus;
E quando a noite da vida
Já nos estende seus véus,
Todos os cantos da lira
São consagrados a Deus!

JÚLIO DINIS

"Mais tarde, quando vi a confusão que as pessoas fazem com o corpo lembrei-me de como tudo aquilo era tão diferente: Era uma coisa simples e inocente como é tudo o que manda fazer a natureza. Ainda hoje acho que as pessoas, quando gostam umas das outras, deviam fazer-se festas e arranharem-se nas costas, assim, devagarinho, como ela me fazia."

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA, in "Tia Suzana Meu Amor"

"A história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. à medida que o desporto se fez indústria, ele foi perdendo a beleza que nasce da alegria de jogar porque sim.
Neste mundo de fim de século, o futebol profissional condena o que é inútil e é inútil o que não é rentável. Ninguém ganha com essa loucura que faz com que o homem seja criança por um tempo, jogando como joga a criança com o balão e como joga o gato com o novelo de lã: bailarino que dança com uma bola leve como o balão que vagueia pelo ar e como o novelo que rola, jogando sem saber que joga. Sem motivo, sem relógio e sem árbitro."

EDUARDO GALEANO, "O Futebol", in "Manifesto", Junho de 2004

Porto, 07 de Julho de 2004

25 abril, 2009

LEITURAS


Frei Petar, monge bósnio cristão, é preso por engano e encarcerado na prisão de pior reputação duma Istambul, então Constantinopla, capital do Império Otomano: «O pátio maldito». Nesta, cruzam-se assassinos, violadores, assaltantes, conspiradores, mas também inocentes e falsos acusados de todas as classes e religiões, cada qual com um percurso, uma história e várias mentiras.
No «pátio maldito», o frade vai conhecendo as histórias dos seus companheiros de infortúnio. A sua voz vai-se diluindo nos muitos relatos dos outros prisioneiros até desaparecer entre as diversas histórias que ouve, as mentiras que cada um inventa e as diferentes noções de justiça e de realidade… Entre ódios e recordações vão-se misturando presente e passado, realidade e ficção, numa história de histórias.
Uma notável metáfora sobre a harmonia entre os homens em condições adversas. Andric descreve os processos pelos quais a História se entranha na vida dos indivíduos e neles se reflecte, nm eterno jogo entre o particular e o universal, ao mesmo tempo que põe a nu a raiz dos conflitos que têm assolado os Balcãs ao longo dos séculos.


Ivo Andric, prémio Nobel de Literatura, nasceu na Bósnia em 1892. Desde jovem mostrou grande interesse na política da sua época. Torna-se membro do movimento nacionalista progressista Bósnia Jovem, e chega a ser preso por suspeita de conspiração no assassinato do Arquiduque Francisco Fernando, que despoletaria a I Grande Guerra. É dentro dos muros da prisão de Maribor que «humilhado como um verme» escreve os seus primeiros textos. Em 1920 inicia uma brilhante carreira diplomática que o leva a cidades como Madrid, Viena, Bucareste, Paris e Genebra ao mesmo tempo que vai publicando contos, poemas e relatos de viagem (como «Portugal, terra verde»). Em 1944 publica o seu primeiro romance «A ponte sobre o Drina» (Cavalo de Ferro, 2007). Os bombardeamentos a Belgrado surpreendem-no em Berlim como Ministro dos Negócios Estrangeiros na Alemanha do III Reich. Recusa o asilo que os nazis lhe oferecem e regressa a uma Jugoslávia ocupada. Afasta-se do serviço diplomático e, em 1955 publica «O pátio maldito». Continua a escrever contos e romances a um ritmo cada vez menor. É galardoado com o prémio Nobel de literatura em 1961. Morre em 1975, na Jugoslávia de Tito, com quem mantinha relações próximas.


Andric conduz-nos de novo em viagem pela complexidade dos homens, pelos meandros do Império Otomano e por este «pátio maldito, como malditos são os pátios de todas as prisões, sobretudo quando prendem a eito, juntando pessoas inocentes àqueles que vivem no interior do crime. O comportamento humano em situação de ruptura acaba por se tornar imprevisível.


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